sexta-feira, 14 de julho de 2023

CARONTE (ATO ÚNICO)

Escrito por
MIKE WEVANNE

O chumbo voou através do corredor do hospital enquanto a horda cambaleante avançava na direção de Álvaro… A multidão tropeçava por cima dos cadáveres caídos, das macas e cadeiras espalhadas pelo caminho, tudo que havia sido deixado para trás durante o início do fim de tudo. As manchas de sangue que pintavam as paredes e o chão de vermelho e negro já estavam ali antes de Álvaro ter despertado a atenção dos desmortos.

Cada metro a menos da distância entre o mercenário e os zumbis significava que os momentos finais da vida de Álvaro Ramires ficavam mais próximos, porém ele estava ali para lutar até o último segundo: ganhando tempo para a fuga da Doutora Naomi e pro resto da Equipe Caronte, uma punhado de pescoços duros que não tinham mais nada para perder, ainda assim ajudavam da melhor forma que sabiam: localizar e destruir!

O fuzil cuspia sua munição, decapitando e desmembrando. A carne daquelas pessoas que haviam esquecido de morrer era dilacerada pelo chumbo, mas pouco sangue ainda jorrava pelos buracos feitos em seus corpos, apodrecidos há dias, seu sangue adquirira uma viscosidade repugnante. Eles não sentiam mais medo nem possuiam qualquer sinal de consciência, a única coisa que lhes restou era a fome. Inexplicável. Eram menos que animais, tomavam seu caminho para fora de qualquer classificação biológica que pudesse explicar sua existência.

As rajadas da arma de fogo os retardavam, mas a turba seguia, sem hesitação, estendiam seus braços decrépitos e abriam as bocarras enegrecidas pela gangrena generalizada, em busca de carne. A carne de Álvaro!

Subitamente o barulho ensurdecedor dos cartuchos explodindo deu lugar a uma sequência curta de pequenos cliques. Sem munição.

O jogo estava acabado.

Álvaro não tinha muito tempo para pensar a respeito, ele aprendeu a agir sob pressão e reflexo. Pegou sua faca e a arremessou no último desmorto que teve a oportunidade de abater. A lâmina cravou em cheio na testa do alvo, que caiu como se alguém tivesse lhe apertado um botão de desligar, caiu como se finalmente tivesse percebido seu destino manifesto:

— ESTÁ MORTO, CARALHO! — Em seguida Álvaro olhou em volta e tomou a primeira porta que viu antes de quase ser apanhado pelas mãos e dentes dos lazarentos. Tudo ficou escuro. Ainda sob ato reflexo tateou até a tranca da porta enquanto usava o próprio corpo como escora.

Pelo cheiro e pelo espaço reduzido em que acabou confinado, deduziu que estava numa dispensa de materiais de limpeza. Estava num beco sem saída.

“A barca do ceifeiro finalmente o levou pro outro lado do rio”, era como diziam em seu grupo sobre os membros que morriam em missão. A Equipe Caronte era formada por homens e mulheres que iam pelo rio do Inferno e sabiam que um dia a viagem chegaria ao final.

Na escuridão, Álvaro tentou se acalmar, controlar a respiração, reduzir a adrenalina e pensar. Sentou, suspirou profundamente e esperou… Não tinha mais nada para fazer além de esperar, não haveria resgate para ele. A engenheira química que foram resgatar já estava salva e sua missão estava cumprida. Ao custo de sua própria vida? Álvaro pensou que era uma troca justa. Considerando que os líderes da comunidade estivessem certos em relação à doutora.

Entre o vazio escuro daquele lugar e a algazarra insana do lado de fora, a iminência da porta desabar era uma preocupação. Álvaro começou a perceber que não era tão durão quanto imaginava, a ameaça da morte já assediava os limites dos seus nervos. A situação se tornou uma questão de escolha: morrer por inanição preso naquele buraco ou se entregar às criaturas e ser transformado em mais um dos que andavam sem estar vivos.

A segunda opção era algo que não aceitaria. — Nunca! — Tateou os objetos em volta, pensou em cometer suicídio bebendo o material de limpeza, mas isso poderia condená-lo a uma longa agonia antes que a morte chegasse… Se realmente chegasse.

Então Álvaro praguejou que talvez tivesse se livrado cedo demais de sua faca.

FIM

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sexta-feira, 9 de julho de 2021

SOMBRAS DO NADA: A RAINHA NAS SOMBRAS (ATO 3)

Escrito por
MIKE WEVANNE

Dedicado para
ERGA

3.

Everton se entregou aquela escuridão. Era um lugar frio, mas confortável. Ele sentia o toque de Estér, sentia o sangue fervendo em suas veias. Todo o poder que vinha dela e fluia até seu corpo, dominando toda sua vontade. Ele era Dela.

Buscando-a, ela sorriu em troca. A voz da deusa ressoou através da vastidão escura respondendo à devoção de Everton, num tom tão doce quanto ardente. Ele dedicou mais uma vez a sua atenção sobre ela e delirou pelas curvas daquele corpo, pela palidez da pele macia, pelas coxas e seios voluptuosos. Mais uma vez aqueles lábios vermelhos chamaram seu nome… O convidaram. Então sentiu algo pulsante e molhado dentro da cueca.

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Um estrondo rompeu aquela quietude e invadiu a sala de Everton. Homens vestidos de colete, pistolas empunhadas. Avançaram sobre o lugar como uma onda, varrendo a escuridão com a luz de suas lanternas.

— Polícia civil! Não se mexa! — Mas a ordem atingiu ouvidos que pareciam estar alheios ao que acontecia em volta.

— Que caralho de cheiro é esse??? — Foi o que um dos policiais disse enquanto a ânsia revirava seu estômago. Sua mão buscou o interruptor de luz.

A claridade revelou a bagunça do lugar. O chão e os móveis estavam manchados com algo que era de um vermelho quase negro. A atenção de alguns agentes estava presa no que havia sobre a mesa de jantar: uma massa viscosa de carne apodrecida, pêlos e ossos partidos, no que parecia ser um animal estripado.

— Isso era um gato? — Alguém tentou adivinhar. Outros policiais seguiam através do restante do apartamento.

— Milton, você precisa ver isso aqui! — O aviso veio da cozinha, chamando pelo investigador encarregado que estava tentando decifrar o homem catatônico no sofá da sala.

Havia um cadáver na cozinha, o corpo de uma mulher, de bruços sobre a bancada. A cabeça estava esmagada, os pedaços do crânio e do cérebro estavam espalhados entre várias tigelas com leite azedo e biscoitos mofados. O fedor de carniça era insuportável ali, dois policiais correram até a pia para vomitar, mas só um deles chegou lá a tempo.

Depois de terem se certificado da segurança do lugar, o investigador Milton voltou para a sala. Apenas aquele cômodo, além da cozinha, possuíam a anormalidade sinistra do lar de um psicopata. O resto do apartamento estava arrumado e limpo. Todos estavam com a atenção voltada para Everton, que até então não tinha esboçado reação alguma ao que estava acontecendo à sua volta. Apenas olhava para a TV, desligada, com o olhar perdido, louco, fascinado por algo que não estava lá.

O investigador se posicionou entre aqueles olhos e a TV, encarou Everton e estalou os dedos diante do seu rosto. O advogado piscou os olhos e o encarou de volta, como se estivesse procurando por alguém que havia lhe chamado de um lugar distante.

Então os policiais o agarraram pela camisa, Everton foi jogado ao chão e algemado, mas apenas quando começaram a puxá-lo para fora do apartamento que sua passividade deu lugar a uma agitação seguida por estado de desespero.

— O QUE VOCÊS FIZERAM??? — Ele escorregou por braços desavisados e deu uma cabeçada que quebrou o nariz de um dos policiais que o detinham. O outro que tentava mantê-lo sob controle recebeu uma mordida no braço.

Os olhos vidrados e a boca espumante mostravam o tipo de determinação que havia tomado o corpo do assassino Everton. Quatro agentes tiveram que empreender esforço para conter um homem que visivelmente estava fora do padrão de uma forma física saudável.

— Vocês! Vocês não podem me levar para longe DELA!

Naquele momento os policiais que haviam sido machucados por ele estavam decididos a dar o troco: o golpe de um cacetete abriu o supercílio esquerdo de Everton, o sangue jorrando dali escorreu por sua face, cobrindo-a de vermelho. Os joelhos do advogado vacilaram e depois de um empurrão seu rosto carimbou a parede com uma mancha vermelha, então tropeçou e caiu no chão. Sentiu o impacto de um coturno contra o seu queixo, o estalou denunciava a fratura da mandíbula. Caído, ele cuspiu sangue e alguns dentes.

Porém a surra não fez Everton ficar manso. Os policiais necessários para levá-lo através do corredor do prédio já eram seis.

— Socorro! Eles tão me levando! Minha Senhora! Desculpa! Eles tão me levando! Esses putos estão me levando! Esses merdas!

— Pelo amor de deus, alguém faz esse desgraçado calar a boca! — Milton sentiu um calafrio quando olhou pro corredor vazio atrás deles para onde Everton dirigia seus protestos.

— Me espera! Minha Rainha! Eu vou voltar! Juro que vou voltar pra Senhora! Eu juro!

Então Everton parou de se debater. Seu rosto mostrou a apatia com que os policiais haviam o encontrado e ele se deixou conduzir passivamente, apesar da violência com que continuava sendo tratado. Milton mandou pararem com aquilo e levarem-no logo embora. Sentiu que havia algo errado e não queria provocar o que quer que estivesse lhe trazendo aquela sensação inexplicável de alerta.

O policial olhou novamente para o corredor pelo qual tinham passado, não conseguia racionar o que havia lhe perturbado mais em toda aquela cena de crime dantesca, mas pensou ter ouvido um baixo e terno "shhh..." vindo das sombras. Uma presença. Em sua mente enxergou a mulher pálida de vestido e cabelos negros, com o dedo diante dos lábios carnudos ordenando:

— Shhhh...

Milton piscou mas não havia nada, apenas o corredor. Ele olhou para os outros e era como se apenas ele e Everton tivessem ouvido aquilo, mas inexplicavelmente todos ficaram calados e um certo clima de apatia continuou durante todo o resto da prisão.

FIM

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Saudações joviais, 3d6 leitores!

É isso, depois de um longo, looongo hiato, consegui finalizar A Rainha nas Sombras! Nesse momento eu gostaria de deixar alguns pontos para aqueles que me honraram com sua atenção até aqui:

Primeiramente, #forabolsonaro!

Segundamente, peço perdão pelo vácuo entre a última postagem e este texto aqui. Infelizmente os dias andam passando rápido demais para meu cérebro processar enquanto tenta lidar com as muitas mazelas que não apenas assolam o país, como também assediam a minha saúde física e mental.

Terceiramente, é fato que eu detesto dar desculpas, prefiro corrigir meus atos do que justificá-los. Em todo caso o disclaimer serve como uma prestação de contas para que seja dado o devido respeito a quem acompanha minhas desventuras escritas.

Então para vocês leitores, aqui vai tanto meu agradecimento por não desistirem deste pretenso escritor, quanto meu pedido de perdão pelo sumiço.

Vamos ver o que as Musas nos resevam no caminho adiante! E que Bons Ventos voltem a soprar palavras neste blog.

See ya!

MWXS

PS: lembrando que para conferir o capítulo anterior basta seguir este link.

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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

SOMBRAS DO NADA: A RAINHA NAS SOMBRAS (ATO 2)

Escrito por
MIKE WEVANNE

Para
ERGA

2.

Everton girou a chave e abriu a porta. Invadiu a escuridão do apartamento com uma sensação de alívio… Finalmente havia chegado! Bateu a porta atrás de si e não se importou em ligar a luz, atravessou a sala através da penumbra até chegar ao sofá e se esparramar lá. Ainda estava atordoado de sono. Sua mão foi até a mesa de centro para largar as chaves e apanhar o controle remoto. Ligou a TV.

Passava qualquer coisa em qualquer canal.

Foi quando um cheiro pungente o alcançou. Passou de um odor forte que ele não conseguia identificar para um fedor terrível de carniça. Everton olhou em volta, sua vista vagou pela penumbra, cobrindo o chão, paredes e móveis até estacionar no vulto do seu gato sobre a mesa de jantar.

— Ei, Baltazar!

O bicho não se moveu. Everton conseguia ver apenas a forma escura o encarando, apontando dois pontos luminosos na sua direção.

— Que cheiro horrível é esse? — Alguma coisa fez com que ele sentisse um aperto no peito. O coração começou a palpitar, uma angústia escalou pela garganta e o cheiro de coisa podre estava prestes a fazê-lo vomitar. — Pelo amor de deus!

Everton levantou e a náusea fez ele cambalear até o interruptor. A luz afugentou a escuridão e o ataque de ansiedade que o acossavam. A claridade aliviou a pressão em seu peito e então tudo estava bem. Até seu ânimo estava restaurado! Olhou em volta novamente em busca da origem do mau cheiro, embora não estivesse mais o sentindo. Chão, paredes e móveis, tudo estava em ordem, arrumado e limpo.

— Eu não sinto cheiro nenhum — O gato respondeu. Ainda estava sobre a mesa, os olhos escancarados e a cabeça inclinando com curiosidade na direção de Everton.

— Acho que passou. Que estranho — Everton respirou fundo para uma última verificada, o fedor podre não estava mais ali.

— Besteira! Esquece isso! Agora que você chegou pode por ração na minha tigela? A miserável da tua mãe não me serviu hoje, estou morto de fome!

— Calma, eu acabei de chegar — Everton voltou ao sofá. Desabotoou a camisa enquanto olhava pro bichano esperando alguma resposta atravessada.

O gato voltou a se acomodar sobre a mesa. — Isso é um insulto! Tudo por culpa daquela velha maldita!

— Não fala assim da minha mãe, Baltazar! Porra, não sei quem é o mais ciumento entre vocês dois. Dá um desconto, tá tarde, viu a hora?

Novamente com o controle remoto na mão, Everton procurou o canal certo mas o que ele esperava encontrar ainda não estava lá. Olhou o relógio em seu pulso e praguejou.

— E as coisas no escritório, como estão? Espero que essas horas extras estejam te rendendo pelo menos uma boa trepada — A voz do gato era cínica porque ele já sabia a resposta.

— Antes fosse isso. Tô atolado de trabalho até o pescoço e para variar aquele nojentinho do filho do Vittorio resolveu aprontar. Não tive tempo de falar com a Cibele.

— Blá blá blá! Sempre com desculpinhas! Deixa de ser frouxo, Everton! A tua chefinha tá muito afim de fuder contigo! Tá perdendo tempo sendo um covarde idiota!

— Cala a boca, Baltazar! — Everton levantou de repente e foi para a cozinha. O rosto estava vermelho, mais de vergonha do que de raiva. O gato maldito sabia como jogar verdades na cara dele — Vou por a porra da tua ração, mas cala a boca! Caralho!

A copa do apartamento ainda estava no escuro e por alguns instantes Everton pensou que tinha sentido aquele fedor novamente, ainda mais forte. Uma mão foi até o nariz e a outra buscou o interruptor na parede. Ligou a luz, girou a cabeça fazendo mais uma varredura com o nariz, nada do odor de carniça. Chão, paredes e móveis, tudo em seu devido lugar, como numa propaganda de margarina. Por algum motivo sua mãe estava lá, pondo leite num copo que estava do lado de uma tigela com biscoitos.

— Dona Guerra, o que tá fazendo acordada uma hora dessas? — Ele a chamava pelo sobrenome por causa da ironia, sua mãe era uma senhora com um temperamento doce e complacente.

— Vim preparar leite com biscoitos, eu sei que tu gosta deles depois de um dia puxado no escritório — As palavras eram gentis mas não soavam carinhosas, o tom de uma mãe que faz seu trabalho mais pelo senso do dever do que pelo amor.

— Besteira, vá dormir! — Everton abriu um armário, apanhou a ração e despejou um pouco na tigela do gato. — Vem, Baltazar!

Esperou o gato mas ele não veio.

Olhou pro relógio, pegou o lanche noturno e foi apressado de volta para a sala. Sentou novamente no sofá e olhou a TV.

A figura feminina já estava lá. Esbelta, pálida, curvilínea. Com os olhos ela cravou dois punhais no coração de Everton, com o sorriso e com a voz sedutora ela nublou seus sentidos. Nada mais importava, nada mais existia. Nem Baltazar, o gato faminto, nem sua mãe, perdendo o sono à espera do filho.

Apenas aquela janela para a sua diva na escuridão.

O vestido negro assentado na pele seguia os movimentos lentos do busto e do quadril voluptuosos, e se misturava a ondulação dos cabelos da mesma cor. Estava escuro novamente. A escuridão o alcançava e o abraçava. Ele estava diante de Ester, sua rainha nas sombras. Ela o chamou e Everton respondeu.

— Estou aqui minha deusa. Meu amor.

CONTINUA

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Saudações joviais, 3d6 leitores!

Uau! Faz um bom tempo que não posto aqui! Infelizmente 2020 não foi um ano gentil e 2021 não começou muito melhor... Mas finalmente retomei a escrevinhação, seguindo o rumo da noite estranha vivida pelo advogado Everton Guerra!

Para aqueles que precisarem reavivar a memória, podem conferir o primeiro ato do conto através deste link. Espero que este novo texto valha o perdão pela falta da demora desta continuação!

No mais, faço o pedido de sempre: se valer, deixe comentário com impressões e sugestões, e compartilhe o blog com seus contatos!

Obrigado pela leitura! Até mais ver!

Bons ventos.

MWXS

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