Everton Guerra estava soterrado pela papelada jurídica onde buscava solução para os problemas em que seu cliente havia se enfiado. Gente com dinheiro suficiente para fazer merda primeiro e deixar que o dinheiro lide com as consequências depois. Mas o advogado já não conseguia manter o foco, sentia sua atenção sugada para longe, sob o assédio do sono e a cada piscar de olhos, ele a via. Nas brumas do estado de quase sono surgia a figura feminina, sinuosa em seu vestido negro. A sua Rainha nas Sombras.
Deu um leve tapa no próprio rosto para sair do devaneio. Apertou Alt + F4. Depois desligou o computador. Desabotoou mais um botão da camisa para aliviar a pressão no pescoço. A gravata já havia sido jogada de lado durante a segunda hora depois que seu expediente tinha terminado. Conferiu o relógio e viu que duas horas mais haviam passado. Bocejou. Estalou os dedos, estalou o pescoço e quando tentou se alongar um pouco mais estalou algum osso indeterminado que o deixou preocupado por alguns instantes.
Procurou pelo copo onde buscava combustível para tocar a noite e viu que nele só restava gelo e água. Everton lembrou desanimado que tinha bebido o restante da última garrafa de uísque guardada no escritório. Teve que se contentar em mastigar o gelo. Seus olhos estavam pesados e agora que ele tinha parado para descansar, sentiu eles arderem reclamando por uma boa noite de sono.
Everton olhou para o monitor desligado diante dele. Tentou discernir a própria imagem naquele espelho negro, mas não conseguiu ver nada além do vulto que o encarava de volta. Um calafrio correu pelo seu corpo. Pensou ter ouvido alguém o chamando num sussurro e depois sentiu um toque macio e gelado em sua nuca. Mas não havia mais ninguém.
Era o bastante.
— Hoje eu não vou mais resolver nada. — Olhou ao redor novamente, um pouco envergonhado por estar falando sozinho. — Foda-se! Não tem mais como fazer porra nenhuma, vou pra casa!
Catou suas coisas e foi embora do escritório. O sono lançava uma camada mágica ao redor, fazendo seus passos reverberarem através do silêncio dos corredores vazios, interrompido apenas quando ele se despediu do porteiro do prédio. A garagem pareceu um deserto de concreto cuja carne estava perfurada por colunas numeradas onde as sombras tentavam se esconder da luz. Puxou as chaves do bolso, elas tilintaram como pequenos sinos antes do assobio alto que ecoou naquela desolação ao mesmo tempo em que as portas do carro destravaram.
Tão tarde da noite o trânsito já não era grande coisa. Depois que ele chegasse na Avenida da Orla, não deveria demorar mais do que meia-hora para chegar em casa. Ele guiava o carro sem ter noção completa se estava indo rápido demais ou devagar demais. A ameaça do sono sustentava um equilíbrio tênue no qual Everton mantinha um estado de alerta apenas o suficiente para permanecer acordado. Ele só sabia que se deixasse o corpo agir instintivamente, acabaria chegando em casa.
Havia alguma agitação na Orla. Os hotéis cuspiam turistas que se agrupavam nos bares e restaurantes como pequenos formigueiros agitados pela música da noite de Nova Babel. O final do ano estava se aproximando e a cidade sempre ganhava fôlego novo nessa época. Havia muitas luzes também, placas luminosas e semáforos, ofuscavam os sentidos de Everton com cores cintilando diante do seu quase torpor. Aquilo o deixou enjoado.
Abriu a janela para buscar conforto na maresia. Sentiu alívio quando a brisa salgada preencheu seus pulmões. Daquela distância, Everton não sabia dizer se ouvia o som das ondas ou se era sua imaginação. Foi quando o calafrio voltou. E a voz feminina que o chamava, antes num sussurro até então ignorado pelos sentidos embotados, surgiu audível como se fosse dita por alguém que estivesse sentada no banco ao lado.
— Estou te esperando.
No escuro da sua mente ele ouviu sinos tilintando distantes. Era um som familiar. O chacoalhar das chaves em sua mão o tirou do transe e Everton descobriu que estava diante da porta do próprio apartamento. Assustado, ele olhou em volta procurando por alguém que tivesse o visto naquela situação embaraçosa causada pelo sonambulismo.
Suspirou. — Eu preciso mesmo de férias.
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Saudações joviais, 3d6 leitores!
Então começamos mais uma viagem, desta vez numa nova série! Em SOMBRAS DO NADA conheceremos personagens que estarão em situações insólitas demais para a própria saúde... Ou sanidade!
Espero que este primeiro ato atice a curiosidade para aqueles que toparem a experiência de leitura, para que descubramos juntos o desenrolar da noite de Everton Guerra!
Eu poderia estar roubando, poderia estar matando, mas estou pedindo para aqueles que tiverem gostado do texto deixarem comentários contando o que acharam da história e compartilharem com seus contatos que se interessam por ficção fantástica! Se você não gostou e quiser comentar também não faz mal, feedback é bom para eu aperfeiçoar o material vindouro.
No mais, tomara que eu conte novamente com sua atenção na próxima sexta-feira, com a continuação de "A Rainha no Escuro"!
Bons ventos.
MWXS
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Muito bacana! A ambientação tá muito boa e você descreve muito bem o ambiente e as situações de uma forma bem aprofundada. Tanto que eu fiquei ansioso para saber o que iria acontecer quando ele chegou no apto.
ResponderExcluirOpa, agradeço demais a visita (e a leitura)! Massa que cê curtiu o texto!
ExcluirBora lá descobrir o que vai acontecer com o Everton! Semana que vem, nesse mesmo bat-canal, nessa mesma bat-hora! :-D
Mike, gostei bastante bastante da maneira como escreve, principalmente como descreve tudo sem ser enfadonho, tornando a leitura interessante. Realmente conseguiu capturar minha atenção e querer saber o desenrolar dos eventos que envolveram Everton. Só achei curto, mas isso se deve mais a minha curiosidade atiçada hahaha!
ResponderExcluirGosto muito dessas histórias que começam com algo rotineiro e desencadeiam uma reação no leitor.
No aguardo do próximo
Salve, Diogo! Bem vindo ao blog! Massa que o texto agradou!
ExcluirPois é, inicialmente escolhi esse formato de publicação das histórias em atos menores para facilitar a postagem semanal, isso acabou dando um ar folhetinesco ao material e calhou que estou achando bem interessante explorar. É uma preocupação minha enquanto escrevo que cada ato ofereça uma experiência completa ao leitor ao mesmo tempo que deixa pontas soltas para atiçar a curiosidade em direção ao próximo ato. É um equilíbrio que eu gosto de ver enquanto leitor também.
Claro, tomei nota aqui e conforme o blog for pedindo (e oxalá que peça!) com certeza os textos ganharão mais corpo! Inclusive estou desenvolvendo um zine para publicar aqui no blog onde pretendo contar histórias maiores (e HQs também, se as musas me favorecerem!).
Espero que cê siga acompanhando o rumo da vida do Everton aqui conosco, Diogo! Valeu pela leitura e pelo comentário! 'Brigadão e até mais ver!
Ou uma crise de esquizofrenia aguda, ou um problema espiritual. Bebida alcoólica e excesso de trabalho também podem apontar um quadro assim.
ResponderExcluirSoturno e lúgubre, um personagem angustiado... de cara a cara com o mistério.
Como sempre, uma boa narrativa.
Salve, Andy! Bom contar com a sua visita novamente por estas bandas!
ExcluirEstou doido para contar o próximo ato! Infelizmente algumas mazelas de saúde me atravancaram as últimas semanas, mas logo essa história vai ser contada! Próxima sexta, com o favor das Musas!
Valeu pelo comentário! Nos vemos nos próximos parágrafos!
Orra, o que o excesso de trabalho não faz, hein? kkkkk
ResponderExcluirDoido de dar nó! XD
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