sexta-feira, 24 de abril de 2020

Caronte: O Assunto Inacabado dos Boones (Ato 1)


Escrito por
MIKE WEVANNE

1.

Lucas e Karina Boones estavam sentados em sofás opostos de sua sala de estar. Ficaram ali durante toda aquela manhã de domingo, encarando um ao outro e quando se sentiam desconfortáveis, encaravam as paredes em volta. Não conversavam, mas o silêncio não era um problema, o aparelho de som estava tocando “Long Tall Sally” num volume alto demais para que pudessem se falar. Mas não faria diferença, porque eles não queriam.

Karina tentava se mexer o mínimo possível, para não mostrar o quanto suas mãos estavam tremendo. Assim que Lucas percebesse o quanto estava aflita, ela desabaria no choro. Lucas estava lidando melhor com a situação, na aparente tranquilidade que tentava dizer: — Olhe para mim, Karina, eu sou um homem que tem tudo sob controle! — Estava suando um pouco. Usou um lenço para limpar a testa. Era o calor ou era o esforço para esconder o nervosismo escapando pelos poros? E o maldito Little Richard gritando na sala não estava ajudando!

A casa dos Boones era um lugar respeitável. Condomínio fechado. Sua sala mostrava as comodidades de uma família bem constituída da classe média. Sofás confortáveis, uma mesa de centro moderna feita de madeira e vidro. TV grande, som surround. Ao redor, cortinas, quadros velhos, porcelana fria. Muitas fotografias mostrando Lucas e Karina junto de amigos e familiares, durante viagens e confraternizações.

Eram casados desde quando tinham vinte e pouco. Antes disso, já namoravam desde os meados da adolescência. Um casal apaixonado e feliz. “Destinados um ao outro” alguns diziam. Muitos sorrisos. Tinham uma energia cativante. Todos queriam estar perto dos Boones.

Com a passagem dos anos, aqueles retratos haviam se tornado janelas para a vida de dois desconhecidos. Um casal apaixonado e feliz. Definitivamente, não eram as mesmas pessoas que estavam naquela sala. Sentadas, mudas, insondáveis uma para a outra.

Não tinham mais nada para dizer, só podiam esperar. Naquele momento desenganado, apenas dois pares de olhos perdidos, de duas pessoas tentando lidar com uma situação sem jeito. Ela buscava conforto e ele confortá-la. Ambos estavam fadados ao fracasso e ainda nem estamos no final da história. Então a música terminou.

O barulho das pancadas violentas na porta e nas janelas puderam ser ouvidas novamente. Pessoas gritando do lado de fora. Nada que fizesse sentido. Karina encolheu no sofá, esperando a próxima música começar e abafar o caos vindo da rua e voltar para a sua falsa sensação de segurança dada pela ignorância dos sentidos.

Quando Little Richard começou “Tutti Frutti” era tarde demais. Não que estivesse fazendo qualquer diferença até então, ou fosse mudar a sucessão dos acontecimentos que seguiriam, mas Karina tinha essa esperança morta dentro de si e se agarrava a ela. Lucas, por outro lado, sabia que a morte era a única certeza daquela situação. Ela queria manter a ilusão enquanto ele só queria que tudo acabasse de uma vez.

A porta e as janelas se despedaçaram sob a força dos estranhos que invadiram a respeitosa casa dos Boones. Karina correu para o lado oposto e Lucas foi atrás. Perseguidos por uma multidão ensanguentada. Os invasores tinham muitos ferimentos. Cortes, mordidas, lacerações, pedaços dos corpos faltando. Deviam estar mortos, mas as bocas escancaradas e a disposição com que botavam a sala de Lucas e Karina Boones abaixo deixava claro o absurdo do contrário. Sob o peculiar infortúnio, aquela bela sala tinha perdido totalmente o charme. Difícil manter a harmonia da mobília quando tudo está sendo revirado e sujo de sangue por desmortos cambaleantes tentando matar os donos do lugar. Até o Little Richard se calou.


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sexta-feira, 17 de abril de 2020

Caronte: Sessão Pipoca dos Mortos (Ato 5)

Escrito por
MIKE WEVANNE

Dedicado a
PBG e AAV

Obs: leia os capítulos anteriores seguindo o link no final do post.

5.

— SOCORRO! — Um grito acordou Prisco. No susto, esticou as pernas e chutou um jarro de plantas. Ainda estava sentado na sacada do apartamento. Tinha caído no sono.

Levantou-se e reparou a manhã surgindo no horizonte entre os prédios ao redor. A serenidade matutina quase o fez duvidar do que havia acontecido. Lembrou do grito. Duvidou se realmente tinha escutado alguém pedindo ajuda ou se havia tido um pesadelo. Esfregou o rosto com as mãos e deixou algo murmurado escapar pela garganta. Nenhum pesadelo poderia ser pior do que a realidade.

Olhou para o interior do apartamento, havia apenas penumbra e silêncio. Andréa tinha ido descansar no sofá. Precisou. A mordida que tinha sofrido ficou bem feia. Quando ela começou a se sentir febril, Prisco desconfiara que poderia ser a inflamação do ferimento ou o estresse daquilo tudo. Provavelmente ambos, então ele havia pedido para ela ir deitar enquanto ele ficaria de vigília. O sono poderia lhe fazer bem. Quando Daniel chegasse eles poderiam procurar por Michelle e depois iriam até um hospital cuidar da mordida. Tudo ia acabar bem. Prisco prometera para Andréa que tudo acabaria bem.

Lembrar de Michelle não fez bem para ele. A culpa lhe deixou inquieto. Tentou espiar novamente as sacadas dos apartamentos vizinhos, até ensaiou alguns passos pelas beiradas da fachada do prédio para tentar alcançar uma saída alternativa de onde estavam presos, mas quando as pernas começaram a bambear, voltou de imediato com o coração pulando pela garganta. Prisco queria muito saber sobre Michelle. Estava preocupado de verdade. Ou queria apenas descarregar o fardo da consciência por tê-la abandonado do lado de fora?

— Michelle! — Sussurrou enquanto se esticou para além da sacada na direção do apartamento vizinho. — MICHELLE! — O grito veio depois que o esforço tinha acabado com o seu fôlego e a sua paciência.

Foi quando ele ouviu um barulho do lado de dentro do seu próprio apartamento. Uma pancada seca, como alguém caindo no chão. Prisco se encolheu e voltou mais uma vez para a segurança da sacada. Lembrou da trágica tentativa de fuga de Andréa e conferiu as chaves no bolso. Seu grito devia tê-la acordado e o susto feito ela cair do sofá.

Entrou e foi até a sala.

— Andréa? Acordou? — Prisco sussurrou preocupado. — Andréa, como está a mordida?

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Os primeiros minutos do amanhecer trouxeram luz e calor. Timidamente, ainda assim carregavam conforto e esperança.

— Foda-se! — Com um salto derradeiro Michelle conseguiu alcançar a sacada do apartamento de Prisco. Quando tentou firmar o pé, escorregou num bocado de terra de um jarro quebrado. No chão, ela respirou fundo, aliviada e com as pernas ainda tremendo pela proeza da escalada. Resultado da aplicação prática dos vídeos de parkour que gostava de assistir na internet… E da adrenalina, que fizera com que ela agisse primeiro e pensasse a respeito depois, sobre o absurdo que isso significava.

Levantou-se do chão. Tirou a terra das mãos e do traseiro. Não era como se a calça jeans já não estivesse suja antes. Olhou para baixo, viu a altura em que estava, conferindo o apuro pelo qual passou. — “Parkour de internet? Sério?” — A ideia parecia razoável no momento. Depois de ter escapado de lunáticos canibais.

Foi quando ela ouviu um som vindo lá debaixo. Disperso na rua deserta, o único som além do seu coração batendo. Um carro dobrou a esquina.

Michelle ficou muda. Era Daniel? — “Qual era a cor do carro dele?” — A ansiedade aumentou quando o veículo parou diante do prédio. Ela acenou. Os longos minutos em que nada aconteceu a fizeram machucar os lábios entre os dentes. Lembrou dos amigos. Olhou para o interior do apartamento, ficariam felizes de vê-la! Mas primeiro queria ter certeza e entregar a boa notícia. Ela estava viva e Daniel havia chegado para resgatá-los! Andréa deveria ter passado a madrugada inteira aflita pela amiga.

Uma pessoa saiu do veículo. Homem. Ele olhou ao redor, desconfiado. Ninguém mais. Então olhou para cima e acenou de volta. Era Daniel.

— É ele! — Michelle gritou animada. — Pessoal, é o Daniel!

Michelle o viu correndo para dentro do prédio. Então se virou para procurar os amigos. — Andréa! Prisco! O Daniel chegou, vamos embora!

Quando chegou à sala, viu a bagunça do lugar. Coisas caídas, TV no chão, sofá derrubado. Muito sangue. E a resposta de ninguém. Sentiu o coração ser engolido por algo frio e seu corpo congelou. — Pessoal, cadê vocês?

Ouviu um murmúrio. Vindo do corredor, alguém da cozinha para a sala. Passos vagarosos, arrastados. Andréa surgiu. Seu olhar perdido, sua roupa ensanguentada.

Michelle recuou, com os olhos marejados e os lábios trêmulos. Quando Andréa percebeu sua presença correu na sua direção. A boca escancarada não emitia mais do que murmúrios desesperados. E suas mãos estiradas buscando Michelle, como quem quisesse roubar um beijo.

FIM?

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Saudações joviais!

É isso. Depois de um atraso inconveniente consegui terminar o primeiro conto aqui no blog. Agradeço demais aqueles que disponibilizaram tempo e atenção aos textos publicados aqui, espero que tenham gostado da experiência!

O que acharam? Qual foi sua parte preferida? Qual foi a parte que não curtiu? Gostaria de ler mais histórias de apocalipse zumbi aqui no blog? O Comentário que for vai me ajudar bastante a melhorar o conteúdo do blog! E se a viagem valeu, que tal compartilhar com os amigos?

Sem mais, novamente, obrigado! Semana que vem embarcaremos uma nova história!

Bons ventos.

MWXS

Obs: seguem os links para os capítulos anteriores de Sessão Pipoca dos Mortos:
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