sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

SOMBRAS DO NADA: A RAINHA NAS SOMBRAS (ATO 2)

Escrito por
MIKE WEVANNE

Para
ERGA

2.

Everton girou a chave e abriu a porta. Invadiu a escuridão do apartamento com uma sensação de alívio… Finalmente havia chegado! Bateu a porta atrás de si e não se importou em ligar a luz, atravessou a sala através da penumbra até chegar ao sofá e se esparramar lá. Ainda estava atordoado de sono. Sua mão foi até a mesa de centro para largar as chaves e apanhar o controle remoto. Ligou a TV.

Passava qualquer coisa em qualquer canal.

Foi quando um cheiro pungente o alcançou. Passou de um odor forte que ele não conseguia identificar para um fedor terrível de carniça. Everton olhou em volta, sua vista vagou pela penumbra, cobrindo o chão, paredes e móveis até estacionar no vulto do seu gato sobre a mesa de jantar.

— Ei, Baltazar!

O bicho não se moveu. Everton conseguia ver apenas a forma escura o encarando, apontando dois pontos luminosos na sua direção.

— Que cheiro horrível é esse? — Alguma coisa fez com que ele sentisse um aperto no peito. O coração começou a palpitar, uma angústia escalou pela garganta e o cheiro de coisa podre estava prestes a fazê-lo vomitar. — Pelo amor de deus!

Everton levantou e a náusea fez ele cambalear até o interruptor. A luz afugentou a escuridão e o ataque de ansiedade que o acossavam. A claridade aliviou a pressão em seu peito e então tudo estava bem. Até seu ânimo estava restaurado! Olhou em volta novamente em busca da origem do mau cheiro, embora não estivesse mais o sentindo. Chão, paredes e móveis, tudo estava em ordem, arrumado e limpo.

— Eu não sinto cheiro nenhum — O gato respondeu. Ainda estava sobre a mesa, os olhos escancarados e a cabeça inclinando com curiosidade na direção de Everton.

— Acho que passou. Que estranho — Everton respirou fundo para uma última verificada, o fedor podre não estava mais ali.

— Besteira! Esquece isso! Agora que você chegou pode por ração na minha tigela? A miserável da tua mãe não me serviu hoje, estou morto de fome!

— Calma, eu acabei de chegar — Everton voltou ao sofá. Desabotoou a camisa enquanto olhava pro bichano esperando alguma resposta atravessada.

O gato voltou a se acomodar sobre a mesa. — Isso é um insulto! Tudo por culpa daquela velha maldita!

— Não fala assim da minha mãe, Baltazar! Porra, não sei quem é o mais ciumento entre vocês dois. Dá um desconto, tá tarde, viu a hora?

Novamente com o controle remoto na mão, Everton procurou o canal certo mas o que ele esperava encontrar ainda não estava lá. Olhou o relógio em seu pulso e praguejou.

— E as coisas no escritório, como estão? Espero que essas horas extras estejam te rendendo pelo menos uma boa trepada — A voz do gato era cínica porque ele já sabia a resposta.

— Antes fosse isso. Tô atolado de trabalho até o pescoço e para variar aquele nojentinho do filho do Vittorio resolveu aprontar. Não tive tempo de falar com a Cibele.

— Blá blá blá! Sempre com desculpinhas! Deixa de ser frouxo, Everton! A tua chefinha tá muito afim de fuder contigo! Tá perdendo tempo sendo um covarde idiota!

— Cala a boca, Baltazar! — Everton levantou de repente e foi para a cozinha. O rosto estava vermelho, mais de vergonha do que de raiva. O gato maldito sabia como jogar verdades na cara dele — Vou por a porra da tua ração, mas cala a boca! Caralho!

A copa do apartamento ainda estava no escuro e por alguns instantes Everton pensou que tinha sentido aquele fedor novamente, ainda mais forte. Uma mão foi até o nariz e a outra buscou o interruptor na parede. Ligou a luz, girou a cabeça fazendo mais uma varredura com o nariz, nada do odor de carniça. Chão, paredes e móveis, tudo em seu devido lugar, como numa propaganda de margarina. Por algum motivo sua mãe estava lá, pondo leite num copo que estava do lado de uma tigela com biscoitos.

— Dona Guerra, o que tá fazendo acordada uma hora dessas? — Ele a chamava pelo sobrenome por causa da ironia, sua mãe era uma senhora com um temperamento doce e complacente.

— Vim preparar leite com biscoitos, eu sei que tu gosta deles depois de um dia puxado no escritório — As palavras eram gentis mas não soavam carinhosas, o tom de uma mãe que faz seu trabalho mais pelo senso do dever do que pelo amor.

— Besteira, vá dormir! — Everton abriu um armário, apanhou a ração e despejou um pouco na tigela do gato. — Vem, Baltazar!

Esperou o gato mas ele não veio.

Olhou pro relógio, pegou o lanche noturno e foi apressado de volta para a sala. Sentou novamente no sofá e olhou a TV.

A figura feminina já estava lá. Esbelta, pálida, curvilínea. Com os olhos ela cravou dois punhais no coração de Everton, com o sorriso e com a voz sedutora ela nublou seus sentidos. Nada mais importava, nada mais existia. Nem Baltazar, o gato faminto, nem sua mãe, perdendo o sono à espera do filho.

Apenas aquela janela para a sua diva na escuridão.

O vestido negro assentado na pele seguia os movimentos lentos do busto e do quadril voluptuosos, e se misturava a ondulação dos cabelos da mesma cor. Estava escuro novamente. A escuridão o alcançava e o abraçava. Ele estava diante de Ester, sua rainha nas sombras. Ela o chamou e Everton respondeu.

— Estou aqui minha deusa. Meu amor.

CONTINUA

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Saudações joviais, 3d6 leitores!

Uau! Faz um bom tempo que não posto aqui! Infelizmente 2020 não foi um ano gentil e 2021 não começou muito melhor... Mas finalmente retomei a escrevinhação, seguindo o rumo da noite estranha vivida pelo advogado Everton Guerra!

Para aqueles que precisarem reavivar a memória, podem conferir o primeiro ato do conto através deste link. Espero que este novo texto valha o perdão pela falta da demora desta continuação!

No mais, faço o pedido de sempre: se valer, deixe comentário com impressões e sugestões, e compartilhe o blog com seus contatos!

Obrigado pela leitura! Até mais ver!

Bons ventos.

MWXS

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