Escrito por
MIKE WEVANNE
1.
Lucas e Karina Boones estavam sentados em sofás opostos de sua sala de estar. Ficaram ali durante toda aquela manhã de domingo, encarando um ao outro e quando se sentiam desconfortáveis, encaravam as paredes em volta. Não conversavam, mas o silêncio não era um problema, o aparelho de som estava tocando “Long Tall Sally” num volume alto demais para que pudessem se falar. Mas não faria diferença, porque eles não queriam.
Karina tentava se mexer o mínimo possível, para não mostrar o quanto suas mãos estavam tremendo. Assim que Lucas percebesse o quanto estava aflita, ela desabaria no choro. Lucas estava lidando melhor com a situação, na aparente tranquilidade que tentava dizer: — Olhe para mim, Karina, eu sou um homem que tem tudo sob controle! — Estava suando um pouco. Usou um lenço para limpar a testa. Era o calor ou era o esforço para esconder o nervosismo escapando pelos poros? E o maldito Little Richard gritando na sala não estava ajudando!
A casa dos Boones era um lugar respeitável. Condomínio fechado. Sua sala mostrava as comodidades de uma família bem constituída da classe média. Sofás confortáveis, uma mesa de centro moderna feita de madeira e vidro. TV grande, som surround. Ao redor, cortinas, quadros velhos, porcelana fria. Muitas fotografias mostrando Lucas e Karina junto de amigos e familiares, durante viagens e confraternizações.
Eram casados desde quando tinham vinte e pouco. Antes disso, já namoravam desde os meados da adolescência. Um casal apaixonado e feliz. “Destinados um ao outro” alguns diziam. Muitos sorrisos. Tinham uma energia cativante. Todos queriam estar perto dos Boones.
Com a passagem dos anos, aqueles retratos haviam se tornado janelas para a vida de dois desconhecidos. Um casal apaixonado e feliz. Definitivamente, não eram as mesmas pessoas que estavam naquela sala. Sentadas, mudas, insondáveis uma para a outra.
Não tinham mais nada para dizer, só podiam esperar. Naquele momento desenganado, apenas dois pares de olhos perdidos, de duas pessoas tentando lidar com uma situação sem jeito. Ela buscava conforto e ele confortá-la. Ambos estavam fadados ao fracasso e ainda nem estamos no final da história. Então a música terminou.
O barulho das pancadas violentas na porta e nas janelas puderam ser ouvidas novamente. Pessoas gritando do lado de fora. Nada que fizesse sentido. Karina encolheu no sofá, esperando a próxima música começar e abafar o caos vindo da rua e voltar para a sua falsa sensação de segurança dada pela ignorância dos sentidos.
Quando Little Richard começou “Tutti Frutti” era tarde demais. Não que estivesse fazendo qualquer diferença até então, ou fosse mudar a sucessão dos acontecimentos que seguiriam, mas Karina tinha essa esperança morta dentro de si e se agarrava a ela. Lucas, por outro lado, sabia que a morte era a única certeza daquela situação. Ela queria manter a ilusão enquanto ele só queria que tudo acabasse de uma vez.
A porta e as janelas se despedaçaram sob a força dos estranhos que invadiram a respeitosa casa dos Boones. Karina correu para o lado oposto e Lucas foi atrás. Perseguidos por uma multidão ensanguentada. Os invasores tinham muitos ferimentos. Cortes, mordidas, lacerações, pedaços dos corpos faltando. Deviam estar mortos, mas as bocas escancaradas e a disposição com que botavam a sala de Lucas e Karina Boones abaixo deixava claro o absurdo do contrário. Sob o peculiar infortúnio, aquela bela sala tinha perdido totalmente o charme. Difícil manter a harmonia da mobília quando tudo está sendo revirado e sujo de sangue por desmortos cambaleantes tentando matar os donos do lugar. Até o Little Richard se calou.
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Belíssimo preâmbulo. Junto ao "Caronte: Sessão Pipoca dos Mortos", parece que pode nascer aí uma futura coletânea temática.
ResponderExcluirSou um fã dos teus textos!
Pô... Ganhei meu dia com esse comentário, Andy! Valeu mesmo!
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