2.
Everton girou a chave e abriu a porta. Invadiu a escuridão do apartamento com uma sensação de alívio… Finalmente havia chegado! Bateu a porta atrás de si e não se importou em ligar a luz, atravessou a sala através da penumbra até chegar ao sofá e se esparramar lá. Ainda estava atordoado de sono. Sua mão foi até a mesa de centro para largar as chaves e apanhar o controle remoto. Ligou a TV.
Passava qualquer coisa em qualquer canal.
Foi quando um cheiro pungente o alcançou. Passou de um odor forte que ele não conseguia identificar para um fedor terrível de carniça. Everton olhou em volta, sua vista vagou pela penumbra, cobrindo o chão, paredes e móveis até estacionar no vulto do seu gato sobre a mesa de jantar.— Ei, Baltazar!
O bicho não se moveu. Everton conseguia ver apenas a forma escura o encarando, apontando dois pontos luminosos na sua direção.— Que cheiro horrível é esse? — Alguma coisa fez com que ele sentisse um aperto no peito. O coração começou a palpitar, uma angústia escalou pela garganta e o cheiro de coisa podre estava prestes a fazê-lo vomitar. — Pelo amor de deus!
Everton levantou e a náusea fez ele cambalear até o interruptor. A luz afugentou a escuridão e o ataque de ansiedade que o acossavam. A claridade aliviou a pressão em seu peito e então tudo estava bem. Até seu ânimo estava restaurado! Olhou em volta novamente em busca da origem do mau cheiro, embora não estivesse mais o sentindo. Chão, paredes e móveis, tudo estava em ordem, arrumado e limpo.— Eu não sinto cheiro nenhum — O gato respondeu. Ainda estava sobre a mesa, os olhos escancarados e a cabeça inclinando com curiosidade na direção de Everton.
— Acho que passou. Que estranho — Everton respirou fundo para uma última verificada, o fedor podre não estava mais ali.— Besteira! Esquece isso! Agora que você chegou pode por ração na minha tigela? A miserável da tua mãe não me serviu hoje, estou morto de fome!
— Calma, eu acabei de chegar — Everton voltou ao sofá. Desabotoou a camisa enquanto olhava pro bichano esperando alguma resposta atravessada.
O gato voltou a se acomodar sobre a mesa. — Isso é um insulto! Tudo por culpa daquela velha maldita!
— Não fala assim da minha mãe, Baltazar! Porra, não sei quem é o mais ciumento entre vocês dois. Dá um desconto, tá tarde, viu a hora?
Novamente com o controle remoto na mão, Everton procurou o canal certo mas o que ele esperava encontrar ainda não estava lá. Olhou o relógio em seu pulso e praguejou.— E as coisas no escritório, como estão? Espero que essas horas extras estejam te rendendo pelo menos uma boa trepada — A voz do gato era cínica porque ele já sabia a resposta.
— Antes fosse isso. Tô atolado de trabalho até o pescoço e para variar aquele nojentinho do filho do Vittorio resolveu aprontar. Não tive tempo de falar com a Cibele.
— Blá blá blá! Sempre com desculpinhas! Deixa de ser frouxo, Everton! A tua chefinha tá muito afim de fuder contigo! Tá perdendo tempo sendo um covarde idiota!
— Cala a boca, Baltazar! — Everton levantou de repente e foi para a cozinha. O rosto estava vermelho, mais de vergonha do que de raiva. O gato maldito sabia como jogar verdades na cara dele — Vou por a porra da tua ração, mas cala a boca! Caralho!
A copa do apartamento ainda estava no escuro e por alguns instantes Everton pensou que tinha sentido aquele fedor novamente, ainda mais forte. Uma mão foi até o nariz e a outra buscou o interruptor na parede. Ligou a luz, girou a cabeça fazendo mais uma varredura com o nariz, nada do odor de carniça. Chão, paredes e móveis, tudo em seu devido lugar, como numa propaganda de margarina. Por algum motivo sua mãe estava lá, pondo leite num copo que estava do lado de uma tigela com biscoitos.— Dona Guerra, o que tá fazendo acordada uma hora dessas? — Ele a chamava pelo sobrenome por causa da ironia, sua mãe era uma senhora com um temperamento doce e complacente.
— Vim preparar leite com biscoitos, eu sei que tu gosta deles depois de um dia puxado no escritório — As palavras eram gentis mas não soavam carinhosas, o tom de uma mãe que faz seu trabalho mais pelo senso do dever do que pelo amor.— Besteira, vá dormir! — Everton abriu um armário, apanhou a ração e despejou um pouco na tigela do gato. — Vem, Baltazar!
Esperou o gato mas ele não veio.
Olhou pro relógio, pegou o lanche noturno e foi apressado de volta para a sala. Sentou novamente no sofá e olhou a TV.
A figura feminina já estava lá. Esbelta, pálida, curvilínea. Com os olhos ela cravou dois punhais no coração de Everton, com o sorriso e com a voz sedutora ela nublou seus sentidos. Nada mais importava, nada mais existia. Nem Baltazar, o gato faminto, nem sua mãe, perdendo o sono à espera do filho.Apenas aquela janela para a sua diva na escuridão.
O vestido negro assentado na pele seguia os movimentos lentos do busto e do quadril voluptuosos, e se misturava a ondulação dos cabelos da mesma cor. Estava escuro novamente. A escuridão o alcançava e o abraçava. Ele estava diante de Ester, sua rainha nas sombras. Ela o chamou e Everton respondeu.— Estou aqui minha deusa. Meu amor.
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Saudações joviais, 3d6 leitores!
Uau! Faz um bom tempo que não posto aqui! Infelizmente 2020 não foi um ano gentil e 2021 não começou muito melhor... Mas finalmente retomei a escrevinhação, seguindo o rumo da noite estranha vivida pelo advogado Everton Guerra!
Para aqueles que precisarem reavivar a memória, podem conferir o primeiro ato do conto através deste link. Espero que este novo texto valha o perdão pela falta da demora desta continuação!
No mais, faço o pedido de sempre: se valer, deixe comentário com impressões e sugestões, e compartilhe o blog com seus contatos!
Obrigado pela leitura! Até mais ver!
Bons ventos.
MWXS
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