sexta-feira, 17 de julho de 2020

CARONTE: BOTECO DOS MORTOS (ATO ÚNICO)


Escrito por
MIKE WEVANNE

Dedicado a
GEORGE ANDREW ROMERO
In memorian

O homem batia com os pulsos no portão metálico do bar, ignorando que o lugar estava fechado. Verdade seja dita, todos os lugares estavam fechados desde que o Dia do Julgamento aconteceu. Não aquele das máquinas dando o troco, mas aquele da ladainha, “sem espaço no Inferno, os mortos caminharão sobre a Terra” coisa e tal. Em todo caso depois da desgraça toda, portões trancados não significavam apenas a tentativa de impedir que um lugar fosse invadido, mas também apontavam que o tal lugar ainda não havia sido invadido mesmo! E o mais relevante a ser considerado: que ele guardava alguma coisa, potencialmente de valor.

Obviamente dar pancadas insistentes e arrebentar as mãos esperando que a carne vença o metal era uma atitude estúpida… Não que aquele homem tivesse outra opção, afinal ele era um desmorto e o bom senso já não fazia parte do seu repertório intelectual para que ele pudesse avaliar a própria burrice. De qualquer forma o impasse entre o cadáver ambulante e o portão foi resolvido quando Michelle atravessou a cabeça do desmorto com um facão.

Wagner veio logo atrás, apanhou o corta-vergalhão da mochila e arrebentou o cadeado. Michelle empurrou o portão rolante para cima e a dupla pulou para dentro do bar logo em seguida.

— O que diabo ele queria? Aqui dentro não tem ninguém! — Michelle sussurrou enquanto assobiava baixo procurando por algum animal que pudesse ter chamado a atenção do ambulante do lado de fora. Nada.

— Pau no cu dele. Eu só quero descansar de forma decente por algumas horas. — Paciência não era o forte de Wagner, mas as horas que os dois estavam perambulando não tinham feito bem para os nervos de ninguém. — Michelle, tu disse que o bicho morto tava tentando pegar alguém aqui dentro, o cadeado tava trancado do lado de fora, merda!

— Eu pensei que a gente poderia ajudar alguém, como eu ía saber que o monstro tava zoado e cismado com o portão?

Wagner olhou desconfiado, Michelle sabia o que aquele olhar de reprovação significava. Ela não tinha dúvidas de que ele reconhecia suas habilidades, o que não significava que aprovasse as escolhas dela quando inventava de bancar a heroína. Ambos já tinham visto coisas demais para saber que era uma linha de ação perigosa. Não apenas porque os desmortos poderiam apanhá-los num descuido, mas também porque nem sempre eles podiam confiar naqueles que tentavam salvar. Foram roubados duas vezes e em outras duas tentaram assaltá-los.

O ser humano nunca foi muito eficaz em estabelecer prioridades, nem antes e nem depois do fim do mundo.

Os dois ficaram ali por alguns minutos sem saber o que fazer. O protesto de Wagner era justo, ambos estavam cansados. Então Michelle deu de ombros, foi para detrás do balcão e pegou uma garrafa de cachaça.

— Bom, pelo menos vamos repor nosso estoque de água. — Ela puxou dois copos de dose e os encheu até transbordarem. — O quê? Não precisa fazer careta de novo, ali no canto tem dois garrafões de água mineral! Isso daqui é só pra molhar a goela!

— Aí sim, jogadora! — Wagner tirou a expressão emburrada do rosto e os dois brindaram.

Antes de beber, Michelle ergueu o copo numa pose quase cerimonial, falando com alguém invisível — Ave, Imperador! Nós que vamos morrer te saudamos! — então entornou a dose de pinga.

Três shots depois talvez eles não estivessem mais com os reflexos tinindo, mas estavam com o ânimo restaurado, com os cantis cheios de água e com alguns pacotes de salgadinhos que poderiam ser úteis para enganar a fome ou numa troca com outros sobreviventes.

Quando saíram do bar eles esbarraram novamente com o desmorto inerte jogado no chão. A cabeça partida em duas. Antes de irem embora Michelle riscou a parede com um triângulo virado para baixo ao lado do portão. Chamativo o suficiente para que eles vissem e lembrassem da água que deixaram escondida caso passassem por lá novamente, discreto o suficiente para não chamar a atenção de outras pessoas.

Enquanto Michelle fechava o portão, fazendo questão de deixar o cadeado arrebentado bem à vista para mostrar que o lugar havia sido pilhado, por curiosidade Wagner se ocupou em vasculhar os bolsos do cadáver no chão. Três cartelas de antiácidos e uma carteira cheia de coisas que não tinham mais valor, como dinheiro, cartão de crédito e um cartão de visitas. — “Alcoólicos Anônimos” — Ele leu e mostrou para Michelle, que já estava pronta para ir embora.

— Lembra o que ouvimos naquela rádio outro dia? Sobre as aglomerações de monstros nos shoppings, como se eles estivessem indo para lá seguindo algum tipo de instinto idiota de quando eram vivos? — Ela tirou do bolso um pequeno cantil metálico e molhou os lábios com a cachaça que tinha o reabastecido. Ofereceu a bebida para Wagner, que ficou em silêncio por uns segundos, refletindo sobre aquele papo todo. Era algo que ele detestava fazer.

— Não… Para mim já deu. — Acenou, incomodado com o sarcasmo da amiga, e guardou os comprimidos na mochila. — Pau no cu dele! E não faz mais a gente perder tempo, merda! — Então os dois pegaram seu rumo para qualquer lugar.

FIM.

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Saudações joviais!

Ontem (16 de julho) foi aniversário do falecimento de George Romero, o pai dos zumbis modernos como os vemos na maioria das obras da cultura pop atuais, e como entusiasta do gênero que sou, achei que seria uma boa oportunidade para escrever um conto em homenagem (e desde já pedindo desculpas pelo conto no meio dos capítulos de A dança dessa noite, mas espero que seja uma causa justa).

Sexta-feira que vem seguimos com programação normal... E para aqueles que chegarem até aqui, fica o pedido de sempre: comentem suas impressões sobre o texto e compartilhem com os amigos, se o material merecer, claro.

Bons ventos.

MWXS

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2 comentários:

  1. Hábitos de quando eram vivos mantidos depois do óbito. Porra!

    E esses desmortos se reunindo em locais comuns me fez lembrar de uma coisa, mas quero esquecer. :D

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    1. E se olharmos ao redor podemos ver bem o quanto os instintos básicos do "bicho humano" está zoado!

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