sexta-feira, 15 de maio de 2020

Caronte: O Assunto Inacabado dos Boones (Ato 3)


Escrito por
MIKE WEVANNE

Obs: leia os capítulos anteriores através dos links no final do post.

3.

Karina Boones estava sozinha e com medo. As pernas desgovernadas tinham a levado até o banheiro e lá ela havia se trancado. A algazarra de punhos e unhas assediavam a porta e destruíam seus nervos. A solidão intensificava o pavor e o pavor a deixava à beira do desespero completo. Tentou passar pela pequena janela que servia de ventilação mas seus ombros não permitiram. Ela sabia que do outro lado havia alguns metros de queda até o chão, mas ela só queria sair dali. As primeiras lágrimas saíram.

— KARINA! — O grito do marido soou abafado através das paredes entre a distância que os separavam.

— Lucas, socorro! — Ela se apegou à esperança de ser tirada dali, sem se importar que a gravidade da situação tornava a possibilidade improvável.

As pancadas na porta cessaram. Os gritos ameaçadores começaram a se afastar. Conseguiu discernir que o barulho estava indo para a sala, no andar de baixo. Ouviu Lucas dizer alguma coisa. Distante no caos. Colou a orelha na porta. — Karina, sai daí! — A voz dele, presumia, também vinha da sala.

Ela colocou a mão na maçaneta e congelou. Karina queria sair dali, mas não por aquela porta. Suspirou, seu punho girou e ela deu uma espiada. Não havia ninguém no corredor. No final dele a porta do quarto do casal, que estava aberta.

— Foge, mulher, pelo amor de Deus! — Lucas estava mesmo na sala, junto de todos aqueles convidados inesperados. E indesejados. Aquelas pessoas ensanguentadas que tinham invadido sua casa o cercavam.

Karina correu até a porta no final do corredor. Não piscou nem olhou pros lados. Entrou no quarto e fechou a porta. Viu a cômoda fora do lugar e a empurrou para usar como escoro.

Depois sentou na cama e se permitiu ser tomada por um vazio de esquecimento e fuga. Não sabia o que fazer. Não sem Lucas. Ela tinha aceito a decisão dele sobre a tragédia do fim do mundo, mas quando viu aquela multidão terrível avançando sobre eles, mutiladas, sangrando, presas em corpos que não deveriam mais estar vivos, não conseguiu. O fim não podia ser daquela forma.

Será que Lucas tinha conseguido escapar? Ele faria qualquer coisa para ajudá-la. Quantos meses estavam sem se falar? Seis meses? Mais parecia um ano inteiro… A vida dos dois havia se tornado uma dor silenciosa, uma infelicidade à qual o casal se mantinha unido. Preso pelo medo de lidarem com o mundo sem ter um ao outro. O mesmo mundo que conquistaram durante a adolescência. O mundo que compreenderam na vida adulta. O mundo que os derrotou durante os poucos anos depois do casamento. Ela não sabia o que tinham perdido, mas sabia que tinham perdido algo. Começou como um silêncio incômodo que se tornou rotineiro e então uma traição destruiu tudo o que tinham construído. Karina e Lucas Boones não conseguiam enxergar nada além das ruínas da felicidade que tinham conquistado, então permaneciam um do lado do outro. E quando o mundo estava acabando numa praga de violência e morte, resolveram partir dele juntos.

Karina voltou para o momento, por um momento, e pensou que se Lucas tivesse escapado, com certeza ele não conseguiria vir por aquela porta. As coisas estavam bem feias lá fora. — Lá fora! — Ela correu até a janela e olhou pro quintal. Ninguém. Analisou as possibilidades. Usou os braços, se apoiou em alguns batentes, cotovelos arranhados e conseguiu chegar ao nível do solo. Estava em forma. A academia tinha se tornado um refúgio quando queria evitar a presença do marido.

Precisava achar Lucas. Atravessou a passagem lateral da casa espiando as janelas. Não via ninguém lá dentro, apenas móveis revirados. Chegou à calçada. Do outro lado da rua viu um dos vizinhos se esgueirando entre os carros. Abafou o impulso de gritar por ajuda, ao invés disso começou a correr até ele. Diante da casa de Karina havia um amontoado daqueles desmortos, debruçados sobre algo… Ou alguém. — Lucas! — Seus passos vacilaram. Havia uma poça de sangue no chão ao redor daqueles desgraçados. — Lucas! — De repente um grunhido próximo demais a tirou do transe, outros monstros que estavam na rua avançavam em sua direção.


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Saudações joviais!

Mais um ato de O Assunto Inacabados dos Boones postado no blog! E mais um conto que resolve de não querer terminar quando eu planejava que terminasse, da mesma forma que ocorreu em Sessão Pipoca dos Mortos. Digo, isso não é bem uma reclamação, na verdade é um bom augúrio, sinal de que a história tomou vida própria e desenrola independente dos desígnios do criador. Esse caminho fora dos trilhos é promissor!

No mais, aos que chegaram até aqui, espero que estejam gostando da história! E peço para que deixem comentários relatando sua experiência de leitura... As impressões que tiveram com personagens e acontecimentos, o que gostaram, o que desgostaram, feedback é sempre bom na busca de aperfeiçoamento! Claro, se o texto merecer, compartilhem com seus contatos nas redes sociais!

Obrigado pela companhia e pela atenção!

Bons ventos.

MWXS

Obs: seguem os links para os capítulos anteriores: 
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4 comentários:

  1. Que foda, cara,

    Na tampa! Gostei pra valer!

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    1. Massa que o senhor tá curtindo! Agradeço demais os comentários, Andy! Ter esse termômetro é essencial pra medir os acertos e os erros! Valeu!

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  2. Esqueci de dizer que a mudança de ponto de vista me surpreendeu também.

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    1. Tô conduzindo isso para onde a história tá levando. Espero estar acertando nas passagens entre as cenas.

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