sexta-feira, 20 de novembro de 2020

SOMBRAS DO NADA: A RAINHA NAS SOMBRAS (ATO 1)

Escrito por
MIKE WEVANNE

Para
ERGA

1.

Everton Guerra estava soterrado pela papelada jurídica onde buscava solução para os problemas em que seu cliente havia se enfiado. Gente com dinheiro suficiente para fazer merda primeiro e deixar que o dinheiro lide com as consequências depois. Mas o advogado já não conseguia manter o foco, sentia sua atenção sugada para longe, sob o assédio do sono e a cada piscar de olhos, ele a via. Nas brumas do estado de quase sono surgia a figura feminina, sinuosa em seu vestido negro. A sua Rainha nas Sombras.

Deu um leve tapa no próprio rosto para sair do devaneio. Apertou Alt + F4. Depois desligou o computador. Desabotoou mais um botão da camisa para aliviar a pressão no pescoço. A gravata já havia sido jogada de lado durante a segunda hora depois que seu expediente tinha terminado. Conferiu o relógio e viu que duas horas mais haviam passado. Bocejou. Estalou os dedos, estalou o pescoço e quando tentou se alongar um pouco mais estalou algum osso indeterminado que o deixou preocupado por alguns instantes.

Procurou pelo copo onde buscava combustível para tocar a noite e viu que nele só restava gelo e água. Everton lembrou desanimado que tinha bebido o restante da última garrafa de uísque guardada no escritório. Teve que se contentar em mastigar o gelo. Seus olhos estavam pesados e agora que ele tinha parado para descansar, sentiu eles arderem reclamando por uma boa noite de sono.

Everton olhou para o monitor desligado diante dele. Tentou discernir a própria imagem naquele espelho negro, mas não conseguiu ver nada além do vulto que o encarava de volta. Um calafrio correu pelo seu corpo. Pensou ter ouvido alguém o chamando num sussurro e depois sentiu um toque macio e gelado em sua nuca. Mas não havia mais ninguém.

Era o bastante.

— Hoje eu não vou mais resolver nada. — Olhou ao redor novamente, um pouco envergonhado por estar falando sozinho. — Foda-se! Não tem mais como fazer porra nenhuma, vou pra casa!

Catou suas coisas e foi embora do escritório. O sono lançava uma camada mágica ao redor, fazendo seus passos reverberarem através do silêncio dos corredores vazios, interrompido apenas quando ele se despediu do porteiro do prédio. A garagem pareceu um deserto de concreto cuja carne estava perfurada por colunas numeradas onde as sombras tentavam se esconder da luz. Puxou as chaves do bolso, elas tilintaram como pequenos sinos antes do assobio alto que ecoou naquela desolação ao mesmo tempo em que as portas do carro destravaram.

Tão tarde da noite o trânsito já não era grande coisa. Depois que ele chegasse na Avenida da Orla, não deveria demorar mais do que meia-hora para chegar em casa. Ele guiava o carro sem ter noção completa se estava indo rápido demais ou devagar demais. A ameaça do sono sustentava um equilíbrio tênue no qual Everton mantinha um estado de alerta apenas o suficiente para permanecer acordado. Ele só sabia que se deixasse o corpo agir instintivamente, acabaria chegando em casa.

Havia alguma agitação na Orla. Os hotéis cuspiam turistas que se agrupavam nos bares e restaurantes como pequenos formigueiros agitados pela música da noite de Nova Babel. O final do ano estava se aproximando e a cidade sempre ganhava fôlego novo nessa época.  Havia muitas luzes também, placas luminosas e semáforos, ofuscavam os sentidos de Everton com cores cintilando diante do seu quase torpor. Aquilo o deixou enjoado.

Abriu a janela para buscar conforto na maresia. Sentiu alívio quando a brisa salgada preencheu seus pulmões. Daquela distância, Everton não sabia dizer se ouvia o som das ondas ou se era sua imaginação. Foi quando o calafrio voltou. E a voz feminina que o chamava, antes num sussurro até então ignorado pelos sentidos embotados, surgiu audível como se fosse dita por alguém que estivesse sentada no banco ao lado.

— Estou te esperando.

No escuro da sua mente ele ouviu sinos tilintando distantes. Era um som familiar. O chacoalhar das chaves em sua mão o tirou do transe e Everton descobriu que estava diante da porta do próprio apartamento. Assustado, ele olhou em volta procurando por alguém que tivesse o visto naquela situação embaraçosa causada pelo sonambulismo.

Suspirou. — Eu preciso mesmo de férias.

CONTINUA

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Saudações joviais, 3d6 leitores!

Então começamos mais uma viagem, desta vez numa nova série! Em SOMBRAS DO NADA conheceremos personagens que estarão em situações insólitas demais para a própria saúde... Ou sanidade!

Espero que este primeiro ato atice a curiosidade para aqueles que toparem a experiência de leitura, para que descubramos juntos o desenrolar da noite de Everton Guerra!

Eu poderia estar roubando, poderia estar matando, mas estou pedindo para aqueles que tiverem gostado do texto deixarem comentários contando o que acharam da história e compartilharem com seus contatos que se interessam por ficção fantástica! Se você não gostou e quiser comentar também não faz mal, feedback é bom para eu aperfeiçoar o material vindouro.

No mais, tomara que eu conte novamente com sua atenção na próxima sexta-feira, com a continuação de "A Rainha no Escuro"!

Bons ventos.

MWXS

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quinta-feira, 29 de outubro de 2020

GIGANTES OU MOINHOS DE VENTO? NO APOIA.SE!

Saudações joviais, 3d6 leitores!

Essa era uma ideia que eu namorava tem é chão... Então finalmente reuni coragem para abrir um projeto de financiamento coletivo recorrente para o blog afim de buscar apoio de leitores e seguirmos nessa jornada por entre os mundos e personagens peculiares que conhecemos aqui no blog.

Para aqueles interessados em considerar dar esse tapinha nas costas e esse troco para contribuir pro desenvolvimento do blog, só clicar aqui e conhecer a página da campanha no Apoia.se!

No mais é isso. A sorte está lançada, que os dados sejam gentis e que as Musas nos favoreçam! Quem quiser fazer sugestões ou críticas, deixem comentários aqui no post.

Desde já agradeço aos que estão lendo estas linhas e lerão as vindouras.

Bons ventos.

MWXS

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sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O BLUES DE NOVA BABEL: A DANÇA DESSA NOITE (ATO 3)


Escrito por
MIKE WEVANNE

3.

Obs: leia as partes anteriores dessa história pelos links no final do post.

Susane trocou o traje do balé pelo jeans justo e pela camiseta de mangas rasgadas. A roupa dava a ela um ar rebelde, mas não escondia a delicadeza dos movimentos com que ela fazia qualquer coisa. O assunto sobre o qual as amigas estavam conversando não a agradava ao ponto de lhe roubar o ânimo, mas ela sabia que o sábado não ia acabar ali, com o fim da tarde de ensaio. As três estavam terminando de se trocar enquanto acertavam seus assuntos. Além de colegas na companhia de dança Voo dos Cisnes, também trabalhavam juntas no hotel Nichibotsu.

— Eles vão chegar na terça-feira. Vai dar tudo certo. — Carina tentou afugentar o medo das amigas enquanto tentava disfarçar o próprio.

Susane sabia daquela farsa. Sorriu um sorriso sem lastro de alegria que fosse suficiente para Carina não perceber seu desconforto. Apenas Hina comprou as duas mentiras, porque não se importava e porque sabia que as três estavam afundadas demais no problema para fazer algo a respeito, então não queria se preocupar com o que não tinha solução. Então elas voltaram a discutir sobre onde iriam passar a noite de sábado.

— Ouvi falar que o Última Chance tá fechado. A polícia não bateu lá ou coisa assim?

— Foi um assassinato. Um cara atirou noutro. Mas acho que já abriram de novo. — Carina adorou a oportunidade para mudarem de assunto.

— Não sei… Vamos pro Cantina Luna então? Eu amo a banda que vai tocar lá essa noite, a versão deles de “Todo carnaval tem seu fim” é linda! — Hina seguiu tocando a empolgação que Carina queria puxar. Era uma coisa que as duas faziam.

A notícia sobre o Última Chance fez Susane sentir calafrios. Polícia, crime e morte foram imagens que lhe obscureceram de vez o humor. O gerente o Nichibotsu as envolvera em algo ilegal e elas estavam numa situação onde não tinham muita escolha: de um lado a ameaça velada presente no caso de rejeitarem, do outro o dinheiro oferecido, um valor bom demais para dispensar. Em algumas semanas a companhia ia sair em sua primeira apresentação fora do país e elas precisavam da grana para custear a viagem. Susane não achava que a necessidade era suficiente para a impedir de amaldiçoar a situação.

Terça-feira.

Terça-feira ela, Carina e Hina iriam entrar num esquema de tráfico de drogas debaixo do nariz dos donos do Nichibotsu, tudo articulado pelo gerente e executado por um punhado de pau mandados que trabalhavam no hotel, incluindo as três amigas. A ansiedade fazia o estômago de Susane revirar.

Débora chegou e interrompeu a conversa com um beijo em Susane, depois cumprimentou as demais. Quando voltou a olhar para a namorada percebeu que tinha algo a perturbando.

— O que houve? O que vocês fizeram com a Susane?

Carina e Hina se olharam por alguns segundos, não gostaram do tom com que aquilo foi dito.

— Não fizemos nada, ela quem está de mal com a vida hoje. Nós estamos indo pro Cantina Luna, tu vai com a gente? — O rosto de Hina tinha um sorriso cínico e sonso estampado que só as amigas viam que estava ali. Porque Hina já sabia da resposta da irmã antes mesmo de ter perguntado.

— Ah, não… Tô cansada por hoje. Tudo bem? — Ela terminou de se trocar e desabou num banco, um pouco desconcertada por não querer acompanhar o rolê delas. Era a reação que Hina queria provocar para mudar o foco da conversa.

Susane acenou e sorriu condescendente. Mais uma mentira em que apenas Carina lhe seria cúmplice.

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Quando chegaram ao Cantina Luna o lugar já estava cheio, mas conseguiram uma das várias mesas que tomavam a calçada e pediram cerveja e batatinhas. Qualquer sombra que houvesse passado durante aquela conversa no vestiários da companhia tinha desaparecido. Mas não para Susane. Naquela noite, excepcionalmente, ela não acompanhava a jovialidade típica do trio. Tinha minhocas na cabeça. Pior, mais pareciam serpentes lhe envenenando o espírito.

Carina sabia do estado emocional da amiga mas preferia continuar o ritmo e aproveitar a noite. Eventualmente no meio do caminho ela resgataria Susane daquele humor sombrio. Hina a seguia, como de costume. As duas eram unha e carne, de modo que se alguém se metesse diante do trem desenfreado que a dupla formava, seria altamente recomendável sair da frente.

Depois de poucas horas e muita cerveja, as três entraram num dos ambientes internos do Luna onde ficava o palco. Quando a banda Egonia começou a se apresentar e o público provocou uma onda contagiante de agitação e calor, Carina percebeu o fracasso do seu plano de fazer com que Susane entrasse no mesmo barco em que ela e Hina estavam, então já julgava a amiga um caso perdido para aquela noite. A dupla pegou a mão uma da outra e foram dançar, seguindo adiante no mar da madrugada. Foi durante o cover de “Todo carnaval tem seu fim” que deixaram definitivamente Susane náufraga para trás.

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Tudo em volta de Susane eram sombras e sorrisos desconhecidos. Seus sentidos estavam ofuscados por um véu levantado pelo álcool e pela euforia coletiva. Ela não queria estar ali. Até mesmo a alegria das duas amigas cantando e dançando juntas, possuídas pelo alvoroço provocado pela música, fazia com que se sentisse mal.

Dali a um mês a companhia faria uma apresentação internacional, um grande passo para a sua carreira, era algo excitante demais. Dali a três dias ela entraria num esquema criminoso para pagar pela viagem. Ela queria muito aproveitar a noite com as amigas mas não conseguia, estava sob uma bruma que lhe turvava as emoções.

Então seu olhar trombou com outro igualmente perdido. A feição estranha de alguém que parecia estar debaixo da mesma sombra que ela. Com os olhares presos um no outro, Susane sentiu ele buscar algo dentro dela, um calafrio fez seu rosto empalidecer. Não que ele pudesse ver na escuridão das luzes piscantes e talvez por isso ele tenha chegado mais perto, mas quando isso aconteceu o rosto de Susane já havia recuperado o rubor. A invasão era mútua.

Ela olhou para as amigas, que já tinham decidido tomar um rumo diferente do dela, e foi conhecer o estranho. Depois de alguns minutos Jack não era mais tão estranho e os dois ficaram mais próximos. Fisicamente também. Principalmente. A dança levou a um abraço e o abraço levou a um beijo e o beijo a outro beijo. Que exigiu mais.

Conversaram bastante. Susane sentiu que Jack estava tão desesperado quanto ela, ambos queriam se desligar por algumas horas, e tiveram certeza de que seriam uma ótima companhia um pro outro no curso de ação para realizar esse desejo.

“Vou para casa. Amanhã eu falo com vocês. Se cuidem.” — Foi a mensagem que Susane enviou pro celular de Hina. Deixando para trás as sombras que estavam lhe assombrando naquela noite para escolher sombras mais aconchegantes onde se aninhar. Mesmo se tratando do kitnet apertado e abafado do Jack, mas eram aconchegantes mesmo assim.

FIM

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Saudações joviais, 3d6 leitores!

É isso. Mais uma história encontra seu desfecho, abrindo caminho para uma nova... 

Gostaram do conto? Deixem comentários sobre o que acharam, suas impressões e críticas também! Assim posso saber onde estou acertando e onde estou errando para poder melhorar cada vez mais o conteúdo do blog!

E o que virá? Fiquem a vontade para deixar sugestões! Gostariam de mais uma história de O BLUES DE NOVA BABEL? Ou preferem voltar à CARONTE? Algo novo? Tem muita coisa massa que quero contar aqui no blog!

Vamos descobrir na próxima sexta-feira com o favor das Musas!

Bons ventos.

PS: se você chegou aqui antes de ler os capítulos anteriores de "A Dança dessa noite", você pode encontrar a parte 1 neste link e a parte 2 aqui.

— MWXS

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sexta-feira, 17 de julho de 2020

CARONTE: BOTECO DOS MORTOS (ATO ÚNICO)


Escrito por
MIKE WEVANNE

Dedicado a
GEORGE ANDREW ROMERO
In memorian

O homem batia com os pulsos no portão metálico do bar, ignorando que o lugar estava fechado. Verdade seja dita, todos os lugares estavam fechados desde que o Dia do Julgamento aconteceu. Não aquele das máquinas dando o troco, mas aquele da ladainha, “sem espaço no Inferno, os mortos caminharão sobre a Terra” coisa e tal. Em todo caso depois da desgraça toda, portões trancados não significavam apenas a tentativa de impedir que um lugar fosse invadido, mas também apontavam que o tal lugar ainda não havia sido invadido mesmo! E o mais relevante a ser considerado: que ele guardava alguma coisa, potencialmente de valor.

Obviamente dar pancadas insistentes e arrebentar as mãos esperando que a carne vença o metal era uma atitude estúpida… Não que aquele homem tivesse outra opção, afinal ele era um desmorto e o bom senso já não fazia parte do seu repertório intelectual para que ele pudesse avaliar a própria burrice. De qualquer forma o impasse entre o cadáver ambulante e o portão foi resolvido quando Michelle atravessou a cabeça do desmorto com um facão.

Wagner veio logo atrás, apanhou o corta-vergalhão da mochila e arrebentou o cadeado. Michelle empurrou o portão rolante para cima e a dupla pulou para dentro do bar logo em seguida.

— O que diabo ele queria? Aqui dentro não tem ninguém! — Michelle sussurrou enquanto assobiava baixo procurando por algum animal que pudesse ter chamado a atenção do ambulante do lado de fora. Nada.

— Pau no cu dele. Eu só quero descansar de forma decente por algumas horas. — Paciência não era o forte de Wagner, mas as horas que os dois estavam perambulando não tinham feito bem para os nervos de ninguém. — Michelle, tu disse que o bicho morto tava tentando pegar alguém aqui dentro, o cadeado tava trancado do lado de fora, merda!

— Eu pensei que a gente poderia ajudar alguém, como eu ía saber que o monstro tava zoado e cismado com o portão?

Wagner olhou desconfiado, Michelle sabia o que aquele olhar de reprovação significava. Ela não tinha dúvidas de que ele reconhecia suas habilidades, o que não significava que aprovasse as escolhas dela quando inventava de bancar a heroína. Ambos já tinham visto coisas demais para saber que era uma linha de ação perigosa. Não apenas porque os desmortos poderiam apanhá-los num descuido, mas também porque nem sempre eles podiam confiar naqueles que tentavam salvar. Foram roubados duas vezes e em outras duas tentaram assaltá-los.

O ser humano nunca foi muito eficaz em estabelecer prioridades, nem antes e nem depois do fim do mundo.

Os dois ficaram ali por alguns minutos sem saber o que fazer. O protesto de Wagner era justo, ambos estavam cansados. Então Michelle deu de ombros, foi para detrás do balcão e pegou uma garrafa de cachaça.

— Bom, pelo menos vamos repor nosso estoque de água. — Ela puxou dois copos de dose e os encheu até transbordarem. — O quê? Não precisa fazer careta de novo, ali no canto tem dois garrafões de água mineral! Isso daqui é só pra molhar a goela!

— Aí sim, jogadora! — Wagner tirou a expressão emburrada do rosto e os dois brindaram.

Antes de beber, Michelle ergueu o copo numa pose quase cerimonial, falando com alguém invisível — Ave, Imperador! Nós que vamos morrer te saudamos! — então entornou a dose de pinga.

Três shots depois talvez eles não estivessem mais com os reflexos tinindo, mas estavam com o ânimo restaurado, com os cantis cheios de água e com alguns pacotes de salgadinhos que poderiam ser úteis para enganar a fome ou numa troca com outros sobreviventes.

Quando saíram do bar eles esbarraram novamente com o desmorto inerte jogado no chão. A cabeça partida em duas. Antes de irem embora Michelle riscou a parede com um triângulo virado para baixo ao lado do portão. Chamativo o suficiente para que eles vissem e lembrassem da água que deixaram escondida caso passassem por lá novamente, discreto o suficiente para não chamar a atenção de outras pessoas.

Enquanto Michelle fechava o portão, fazendo questão de deixar o cadeado arrebentado bem à vista para mostrar que o lugar havia sido pilhado, por curiosidade Wagner se ocupou em vasculhar os bolsos do cadáver no chão. Três cartelas de antiácidos e uma carteira cheia de coisas que não tinham mais valor, como dinheiro, cartão de crédito e um cartão de visitas. — “Alcoólicos Anônimos” — Ele leu e mostrou para Michelle, que já estava pronta para ir embora.

— Lembra o que ouvimos naquela rádio outro dia? Sobre as aglomerações de monstros nos shoppings, como se eles estivessem indo para lá seguindo algum tipo de instinto idiota de quando eram vivos? — Ela tirou do bolso um pequeno cantil metálico e molhou os lábios com a cachaça que tinha o reabastecido. Ofereceu a bebida para Wagner, que ficou em silêncio por uns segundos, refletindo sobre aquele papo todo. Era algo que ele detestava fazer.

— Não… Para mim já deu. — Acenou, incomodado com o sarcasmo da amiga, e guardou os comprimidos na mochila. — Pau no cu dele! E não faz mais a gente perder tempo, merda! — Então os dois pegaram seu rumo para qualquer lugar.

FIM.

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Saudações joviais!

Ontem (16 de julho) foi aniversário do falecimento de George Romero, o pai dos zumbis modernos como os vemos na maioria das obras da cultura pop atuais, e como entusiasta do gênero que sou, achei que seria uma boa oportunidade para escrever um conto em homenagem (e desde já pedindo desculpas pelo conto no meio dos capítulos de A dança dessa noite, mas espero que seja uma causa justa).

Sexta-feira que vem seguimos com programação normal... E para aqueles que chegarem até aqui, fica o pedido de sempre: comentem suas impressões sobre o texto e compartilhem com os amigos, se o material merecer, claro.

Bons ventos.

MWXS

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sexta-feira, 3 de julho de 2020

O BLUES DE NOVA BABEL: A DANÇA DESSA NOITE (ATO 2)


Escrito por
MIKE WEVANNE

Obs: siga este link para ler o capítulo anterior.

2.

Jack acertou um direto no queixo do idiota que resolveu não sair da frente do seu punho. Atordoado, o cara caiu de bunda no chão. O resto da turma não se intimidou, estavam confiantes na superioridade numérica. Jack não os recriminou. O resultado de uma briga de quatro contra um era fácil de prever. Então achou que dar meia volta e sair correndo era a melhor aposta.

Banducci não era o bairro ideal para se livrar de uma perseguição a pé: os longos quarteirões murados das fábricas espalhadas pela região faziam com que a paisagem fosse uma monotonia cinzenta de asfalto e concreto, pouco propícia para encontrar vias alternativas para alguém em fuga.

Assim como o problema de um cão feroz não é o latido mas a mordida, as ameaças não lhe preocupavam. Ser apanhado, sim. Tentou parar um ônibus, sem sucesso, além do mais quase foi atropelado. Atravessou a rua mesmo assim, esperando que a sorte o seguisse logo atrás. Por pouco escapou de uma moto, então sim. Quando chegou do outro lado da rua espiou os seus perseguidores. Haviam parado para esperar o trânsito. Jack mostrou o dedo do meio e voltou à corrida.

Quando dobrou a esquina com os pulmões estourando, torcendo pra santa também ouvir o aperreio dos ateus, encontrou um boteco aberto. Entrou e pulou para detrás do balcão. Quando o dono do lugar já estava preparado para protestar sobre aquilo, Jack abriu a carteira e lhe deu uma nota de 50. Pouco depois ele ouviu vozes alvoroçadas vindas do lado de fora, ouviu o dono do bar dizendo aos estranhos que havia visto um homem correndo e pulando um muro de uma das fábrica ao lado.

Momentaneamente fora de perigo, Jack pediu uma dose de pinga. Foi embora antes que precisasse responder as perguntas do homem que já tinha adotado a postura do “velho sábio que dava sabedoria aos jovens tolos”. Foda-se. Jack não precisava de filosofia de cabeça branca. Ele precisava ferrar algumas pessoas antes de ser ferrado por elas.

Voltou atento pra rua. Ficou aliviado de ver que os seus perseguidores não estavam por perto. Apertou o passo até a parada de ônibus e pegou o primeiro que passou. A tempo de ver o grupo de lazarentos correr logo atrás, ensandecidos para lhe dar uma surra. Talvez merecida. Eles mandaram o motorista parar. Jack mentiu dizendo que eram assaltantes. Não parou.

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O tempo que levou para chegar ao Centro foi o tempo do céu trocar do rubro da tarde pro escuro da noite. Quando Jack encontrou uma rua conhecida, fez sinal e desceu do ônibus.

Seu punho estava dolorido e a fuga ainda lhe embrulhava o estômago. Ele sabia que escapar da surra tinha sido uma solução temporária para o verdadeiro problema. Foda-se. Jack não precisava pesar os problemas. Ele precisava de álcool. Não resolveria porra nenhuma, mas poria seus nervos no lugar.

O Cantina Luna era o bar mais próximo de onde estava. Viu os garçons arrumando as mesas na calçada, achou uma onde se acomodar e acenou para alguém atendê-lo. O lugar não ia demorar para ficar cheio de gente. O público dali não era o preferido de Jack, apesar de que as gentes bonitas que o frequentavam eram sempre um colírio, geralmente tinham o nariz empinado demais. A maioria era gente boa, mas que olhava torto para qualquer um que não se encaixasse em seus padrões sociais fúteis.

Futilidade era um remédio que Jack conhecia bem quando não dava conta do estresse. Lembrou das frases baratas de Marco tiradas de algum lugar que ninguém se importava — “Um homem sente-se bem de vez em quando ao exterminar as suas virtudes”.

Talvez ele conseguisse encontrar Vittorio no dia seguinte e resolver as coisas. Amaldiçoou o dia em que inventou de se intrometer em assunto que não era da sua conta — “Jack é nome de herói” —. Amaldiçoou o dia em que seu pai vinha com esse discurso para lembrar o motivo de ter lhe dado esse nome. Teria lhe poupado muitas surras na vida se aquela merda não tivesse sido enfiada em sua cabeça.

Três cervejas depois o Cantina Luna já estava fervilhando de gente. Além das mesas na calçada, o lugar tinha dois ambientes internos, com o bar e um palco onde eram realizados show nas noites de sábado. Uns cartazes anunciavam que a banda Egonia ia tocar naquela noite.

Enquanto esperava a quarta cerveja, a atenção de Jack foi de encontro às risadas vindas de uma mesa ao lado. Um grupo de mulheres conversando, todas eram bonitas e esbeltas, de maneira que o álcool fez com que ele ficasse curioso e engajado na brincadeira silenciosa de imaginar de onde tinham vindo. Foi quando percebeu entre elas uma pequena estrela cujo brilho não estava tão intenso. Alguma coisa tinha lhe roubado a alegria. Ela era baixa, pele escura, com o olhar distante, e ao contrário das amigas, seu sorriso saia sem muito ânimo.

Durante a quinta cerveja Jack encontrou uma amiga. Monique apareceu e lhe convidou para ir pro show daquela noite. Todos sabiam que era impossível discutir contra a empolgação dela, então Jack nem tentou e foi junto. As músicas da Egonia eram inspiradas. A juventude dos integrantes transpirava uma energia que Jack não tinha mais, mas sentia saudades.

Entre essa breve euforia causada pela música, pelo álcool e pela companhia da amiga, Jack reencontrou o grupo de mulheres que tinham lhe chamado a atenção do lado de fora do bar. Elas continuavam animadas, curtindo a balada da banda e a energia do Cantina… Exceto uma delas.

Ela e Jack seguiam seu próprio caminho através da noite. Pela penumbra do ambiente e pelas luzes intermitentes. Pela vibração das pessoas em volta e a pulsação da música ressoando no ar. Então seus olhares se cruzaram. Imediatamente os fantasmas que ambos escondiam dentro de si fizeram com que um se atraísse pelo outro. Foi assim que Susane conheceu Jack.

Eles não viram o final do show da Egonia. Antes disso encontraram algo um no outro, deram as mãos e foram embora do Cantina Luna. Fugidos de todo o barulho e das pessoas. Foram terminar sua noite em outro lugar. O quitinete onde Jack morava era uma espelunca, mas ele se julgava um bom anfitrião.

CONTINUA

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Saudações joviais.

Seguimos nossos passos por Nova Babel, mas agora olhando para trás. O que mais vamos descobrir?

Para aqueles que estiverem gostando da viagem, fiquem a vontade para deixar comentários com suas impressões, sugestões ou críticas. E se o texto merecer, que tal compartilhar com os amigos nas redes sociais?

Bons ventos.

(E até o próximo ato de A DANÇA DESSA NOITE)

PS: leia a continuação de "A dança dessa noite" seguindo este link!

— MWXS

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sexta-feira, 5 de junho de 2020

O BLUES DE NOVA BABEL: A DANÇA DESSA NOITE (ATO 1)



Escrito por
MIKE WEVANNE

1.

O quarto escuro abrigava dois vultos debruçados um sobre um outro. A madeira da cama rangia, mas suportava toda aquela tensão acumulada entre as duas pessoas. Depois que ambos passaram por maus bocados no dia anterior, encontraram um ao outro feito um náufrago encontra um bote salva vidas.

Já haviam perdido a noção do tempo que havia passado. Seus corpos suados enfrentando um calor intenso demais para o ventilador que soprava incerto de estar cumprindo seu dever. Jack usou os dentes para prender um murmúrio e em vez disso o que escapou foi um som gutural. O abdome de Susane estremeceu, ela o prendeu entre as pernas e o envolveu com os braços. Seus dedos cravaram nas costas de Jack, os dentes dele cravaram no pescoço dela, e a dor de ambos se embaralhou com o prazer.

Ele a abraçou forte também. Dois corpos se misturando, uma massa de carne espiralada onde o casal confundia tanto a pele suada quanto a palpitação do coração um do outro. Os lábios não descansavam, mesmo quando ocasionalmente buscavam ar. Susane e Jack se afogavam um no outro.

E gozaram.
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Jack acordou ainda enrolado no corpo de Susane. Na penumbra do quarto ele escorregou para fora da cama e tateou o chão até encontrar a camisinha que tinha jogado fora. Usada e amarrada num nó. Depois achou o controle da TV e ligou num canal qualquer para conseguir alguma iluminação. No meio do caminho até o banheiro apanhou a cueca e o maço de cigarros.

Quando voltou para o quarto, que também era sala e cozinha do quitinete em que morava, sentou na única poltrona que tinha, puxou a garrafa de cachaça que estava próxima. Divagou sobre a noite agourenta que havia tido antes de encontrar Susane. Virou uma dose da pinga e reparou que a TV exibia um filme erótico. Jack não sabia que ainda passavam aqueles filmes nas madrugadas entre os sábados e os domingos. Algo reacendeu dentro dele. Sentiu a pressão aumentar dentro da cueca. Apagou o cigarro, tomou outro gole de cachaça e voltou para a cama.
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Susane não estava dormindo. Aquele calor desgraçado a mantinha acordada e ela estava pensando sobre os problemas do dia anterior. No escuro sentiu um movimento ao lado dela e o corpo de Jack escapuliu do abraço em que os dois estavam embolados. Pouco depois a TV foi ligada e ajudou na iluminação. Susane o viu vestindo a cueca e indo até o banheiro.

Aquela não era a noite mais confortável que tinha tido, mas a companhia estava valendo o aperreio. Principalmente pela fuga que representava. Os dois não poderiam ter se encontrado numa noite mais propícia: buscavam um pouco de loucura para esquecer do bom senso que os obrigava a lidar com os problemas que estavam enfrentando. Terminaram encontrando um ou outro. Então veio o jogo em que se envolveram: de olhares, de palavras, de sorrisos, de intenção… Cujo desfecho os levou até aquele quarto calorento.

Desconfortável, mas a companhia valia.

Quando Susane reparou no que estava passando na TV, viu um homem e uma mulher transando próximo a uma grande fornalha de fábrica. Os dois estavam suados como ela mesma estava. Excitados como ela mesma estava.

Um calafrio correu pela sua pele quando sentiu o corpo de Jack se encaixar no seu. O abraço dele não era a única coisa que estava firme. Então se perderam novamente na loucura um do outro.

Porque a manhã os esperava com todos os problemas. Mas aquela noite pertencia somente a eles.


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Saudações joviais!

Nessa nova história vamos explorar um novo mundo e uma nova temática... Numa pincelada noir, vamos explorar alguns personagens na cidade de Nova Babel. Espero que essa espiada faça valer a viagem!

Sem mais, quem chegar até aqui, peço que deixe um comentário com sua experiência de leitura: impressões, sugestões e críticas. Agradeço muito a força para que eu siga escrevendo e melhorando o conteúdo no blog! E se o texto merecer, compartilhe com os amigos nas redes sociais!

Próxima sexta-feira veremos o segundo ato de "A dança dessa noite"!

Bons ventos.

MWXS
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sexta-feira, 29 de maio de 2020

Caronte: O Assunto Inacabado dos Boones (Ato 4)


Escrito por
MIKE WEVANNE

Obs: leia os capítulos anteriores seguindo os links no final do post.

4.

Karina recuou de volta para a calçada. Um desmorto a agarrou pelo pulso e ela o atingiu com um soco certeiro. Seu punho não tinha muita destreza, mas o tempo na academia o tornou poderoso o suficiente para fazer um nariz explodir. As unhas do monstro a arranharam mas o golpe fez com que ele largasse a pegada.

Com os olhos de Karina buscaram ajuda, do outro lado da rua. O vizinho escondido entre os carros apenas olhou de volta. O maldito covarde aproveitou que ela havia atraído atenção suficiente para que ele mesmo escapasse dali e foi embora.

Enquanto dava passos incertos de volta para casa, ainda sem acreditar na atitude do desgraçado que lhe arrancou o fio de esperança, Karina olhou para o amontoado de desmortos na calçada, queria desesperadamente que a carcaça sendo dilacerada por eles não fosse Lucas. Os monstros já haviam descoberto sua presença e iam na direção de Karina, abandonando o corpo destroçado. Ela se esforçou mas não conseguiu ver o suficiente para identificá-lo.

Quando Karina ficou diante da porta e das janelas destruídas da própria residência, lembrou do terror que havia passado lá dentro. A repulsa tomou suas entranhas e se pudesse ela tinha parado para vomitar. Mas não podia parar e engoliu o que estava vindo. Correu para o portão da garagem, que estava aberto. Lembrou do carro. Empurrou um dos seus perseguidores que estava no caminho, o monstro perdeu o equilíbrio e foi pro chão, ela conseguiu alcançar o veículo. Puxou a maçaneta rezando para que estivesse destrancada.

Um dos desmortos a agarrou enquanto Karina fechava a porta e seus cabelos ficaram presos. Ela só conseguia gritar. Por socorro. Por Lucas. Pelo vizinho que havia a abandonado. E chorar. Segurou a raiz dos próprios cabelos, cerrou os dentes e puxou. Os desmortos gritavam do lado de fora, ela gritou mais ainda. As pancadas das mãos e das cabeças atingindo o vidro das janelas do carro eram enlouquecedores. O medo de que o vidro cedesse estava a destruindo por dentro. Soluçava aos prantos, ela queria que tudo aquilo não fosse verdade. Não podia ser real. Não podia! Desmaiou.

Karina acordou na penumbra da noite, seu corpo tremeu com o calafrio trazido pela lembrança do sonho ruim que teve. Uma resolução mentirosa que não durou muito depois dos seus sentidos começarem a entregar a realidade em volta. Ela estava no carro, ainda assediado sob as pancadas dos desmortos que queriam invadir o veículo e se empanturrar com a carne de Karina. Resignada, se ajustou sobre o assento do motorista, limpou as lágrimas do rosto e levou a mão até a parte de baixo do banco, mas de lá só conseguiu arrancar um pedaço de fita adesiva. A chave reserva do carro não estava no lugar onde deveria estar. Cerrou os dedos em volta do volante e foi tomada mais uma vez pela desesperança, então pensou que aquilo poderia significar que Lucas tinha pego a chave! Que Lucas estava vivo!

Como ela queria que ele estivesse ali! De repente o amor de Karina por Lucas explodiu em seu peito, retumbava tão intenso quanto a esperança dele surgir para resgatá-la! Seu próprio príncipe salvador… Ela ainda tinha humor suficiente para rir da bobagem da imagem que a ideia tinha formado. Viu o próprio punho sujo de sangue e reparou a ardência na cabeça, passou os dedos entre os cabelos e sentiu a ferida úmida deixada pelos vários fios que foram arrancados. Fechou os olhos e se debruçou sobre o volante.

Lucas fora seu porto seguro desde sempre. Mesmo durante aqueles meses de crise. Karina também sabia que era um um farol para Lucas. Depois de um dia ruim, mesmo que só houvesse lhes sobrado o silêncio, a morada do espírito de um era o coração do outro. Um lar vazio ainda é um lar para se buscar santuário. Adormeceu.

Karina Boones acordou presa dentro do seu carro, sitiada por aqueles cadáveres ambulantes que gruniam, arranhavam e golpeavam as janelas com os punhos e com as próprias cabeças ensanguentados. A claridade da manhã do lado de fora da garagem já fazia os vultos a sua volta tomarem forma. Ela os encarava, tentando encontrar qualquer humanidade que houvesse restado naquelas criaturas. Não conseguiu, mas na tentativa reconheceu alguns vizinhos. Pela compleição física, pelo tamanho do cabelo… Pela pequena mancha na bochecha, logo abaixo do olho esquerdo. Seus olhos marejaram novamente e os lábios tremeram. Lucas estava entre eles. Lucas era um dos desmortos. Forçando o próprio rosto contra o vidro, com a garganta esfolada, os olhos vidrados e avermelhados, enlouquecidos expressando uma raiva sem qualquer propósito.

As lágrimas riscaram o rosto cansado de Karina. Ela lembrou de tudo pelo que havia passado nas últimas horas. Todas as ações, todos os pensamentos, todas as esperanças… Todas as lembranças. Então ela sorriu.

Diante da morte, lembrou do quanto havia pensado na vida.

Será que Lucas também havia tido a mesma epifania? — Eu te amo, Lucas. — ela disse encarando a criatura oca em que seu marido tinha sido transformado. Estava sozinha como nunca esteve. Enfrentava uma tempestade de emoções que devastou sua mente. Estava erigindo uma cena emocionante demais para aquele filme mudo e estático que seu cérebro tentava absorver. Não havia mais qualquer esperança na qual se agarrar. Apenas o refúgio do desengano dentro de si, e foi lá onde Karina Boones se perdeu.

FIM

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Saudações joviais!

É isso! Mais um conto finalizado, com a benção das Musas! Para aqueles que chegaram até aqui, só tenho agradecimentos! E se o texto merecer, peço para que deixem comentários contando sua experiência: impressões, sugestões, críticas... Todo feedback é útil para o conteúdo melhorar! Ainda mais, espero que os textos estejam valendo para serem compartilhados com os amigos, que tal?

No mais, como está indo nossa viagem através de um apocalipse zumbi? Querem ver mais desse mundo desolado e sem esperança? Ou estão afim de um novo mundo? Uma história noir? Uma aventura de fantasia?

Seja lá o que as Musas nos reservarem, nos encontraremos na próxima sexta-feira!

Bons ventos!

MWXS

Obs: abaixo seguem os links para os capítulos anteriores do conto. 
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sexta-feira, 15 de maio de 2020

Caronte: O Assunto Inacabado dos Boones (Ato 3)


Escrito por
MIKE WEVANNE

Obs: leia os capítulos anteriores através dos links no final do post.

3.

Karina Boones estava sozinha e com medo. As pernas desgovernadas tinham a levado até o banheiro e lá ela havia se trancado. A algazarra de punhos e unhas assediavam a porta e destruíam seus nervos. A solidão intensificava o pavor e o pavor a deixava à beira do desespero completo. Tentou passar pela pequena janela que servia de ventilação mas seus ombros não permitiram. Ela sabia que do outro lado havia alguns metros de queda até o chão, mas ela só queria sair dali. As primeiras lágrimas saíram.

— KARINA! — O grito do marido soou abafado através das paredes entre a distância que os separavam.

— Lucas, socorro! — Ela se apegou à esperança de ser tirada dali, sem se importar que a gravidade da situação tornava a possibilidade improvável.

As pancadas na porta cessaram. Os gritos ameaçadores começaram a se afastar. Conseguiu discernir que o barulho estava indo para a sala, no andar de baixo. Ouviu Lucas dizer alguma coisa. Distante no caos. Colou a orelha na porta. — Karina, sai daí! — A voz dele, presumia, também vinha da sala.

Ela colocou a mão na maçaneta e congelou. Karina queria sair dali, mas não por aquela porta. Suspirou, seu punho girou e ela deu uma espiada. Não havia ninguém no corredor. No final dele a porta do quarto do casal, que estava aberta.

— Foge, mulher, pelo amor de Deus! — Lucas estava mesmo na sala, junto de todos aqueles convidados inesperados. E indesejados. Aquelas pessoas ensanguentadas que tinham invadido sua casa o cercavam.

Karina correu até a porta no final do corredor. Não piscou nem olhou pros lados. Entrou no quarto e fechou a porta. Viu a cômoda fora do lugar e a empurrou para usar como escoro.

Depois sentou na cama e se permitiu ser tomada por um vazio de esquecimento e fuga. Não sabia o que fazer. Não sem Lucas. Ela tinha aceito a decisão dele sobre a tragédia do fim do mundo, mas quando viu aquela multidão terrível avançando sobre eles, mutiladas, sangrando, presas em corpos que não deveriam mais estar vivos, não conseguiu. O fim não podia ser daquela forma.

Será que Lucas tinha conseguido escapar? Ele faria qualquer coisa para ajudá-la. Quantos meses estavam sem se falar? Seis meses? Mais parecia um ano inteiro… A vida dos dois havia se tornado uma dor silenciosa, uma infelicidade à qual o casal se mantinha unido. Preso pelo medo de lidarem com o mundo sem ter um ao outro. O mesmo mundo que conquistaram durante a adolescência. O mundo que compreenderam na vida adulta. O mundo que os derrotou durante os poucos anos depois do casamento. Ela não sabia o que tinham perdido, mas sabia que tinham perdido algo. Começou como um silêncio incômodo que se tornou rotineiro e então uma traição destruiu tudo o que tinham construído. Karina e Lucas Boones não conseguiam enxergar nada além das ruínas da felicidade que tinham conquistado, então permaneciam um do lado do outro. E quando o mundo estava acabando numa praga de violência e morte, resolveram partir dele juntos.

Karina voltou para o momento, por um momento, e pensou que se Lucas tivesse escapado, com certeza ele não conseguiria vir por aquela porta. As coisas estavam bem feias lá fora. — Lá fora! — Ela correu até a janela e olhou pro quintal. Ninguém. Analisou as possibilidades. Usou os braços, se apoiou em alguns batentes, cotovelos arranhados e conseguiu chegar ao nível do solo. Estava em forma. A academia tinha se tornado um refúgio quando queria evitar a presença do marido.

Precisava achar Lucas. Atravessou a passagem lateral da casa espiando as janelas. Não via ninguém lá dentro, apenas móveis revirados. Chegou à calçada. Do outro lado da rua viu um dos vizinhos se esgueirando entre os carros. Abafou o impulso de gritar por ajuda, ao invés disso começou a correr até ele. Diante da casa de Karina havia um amontoado daqueles desmortos, debruçados sobre algo… Ou alguém. — Lucas! — Seus passos vacilaram. Havia uma poça de sangue no chão ao redor daqueles desgraçados. — Lucas! — De repente um grunhido próximo demais a tirou do transe, outros monstros que estavam na rua avançavam em sua direção.


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Saudações joviais!

Mais um ato de O Assunto Inacabados dos Boones postado no blog! E mais um conto que resolve de não querer terminar quando eu planejava que terminasse, da mesma forma que ocorreu em Sessão Pipoca dos Mortos. Digo, isso não é bem uma reclamação, na verdade é um bom augúrio, sinal de que a história tomou vida própria e desenrola independente dos desígnios do criador. Esse caminho fora dos trilhos é promissor!

No mais, aos que chegaram até aqui, espero que estejam gostando da história! E peço para que deixem comentários relatando sua experiência de leitura... As impressões que tiveram com personagens e acontecimentos, o que gostaram, o que desgostaram, feedback é sempre bom na busca de aperfeiçoamento! Claro, se o texto merecer, compartilhem com seus contatos nas redes sociais!

Obrigado pela companhia e pela atenção!

Bons ventos.

MWXS

Obs: seguem os links para os capítulos anteriores: 
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sexta-feira, 1 de maio de 2020

Caronte: O Assunto Inacabado dos Boones (Ato 2)


Escrito por
MIKE WEVANNE

Obs: leia capítulo anterior seguindo do link no final do post.

2.

Lucas Boones alcançou o topo das escadas e não viu Karina. Corredor e portas. Para trás, escada abaixo e desmortos avançando na sua direção. — Karina! — chamou a esposa enquanto dava os primeiros passos antes de decidir que entrada usar.

Sem obter resposta, escolheu entrar no quarto dos dois. Ao passar, bateu a porta, usou a tranca, apoiou as costas e fechou os olhos. Então seus joelhos tiveram que suportar a pancada quando vários corpos se chocaram contra a porta. Ao sentir a pressão estabilizar, empurrou uma cômoda para usar de escora. — Karina? — Olhou em volta. Nenhuma resposta.

Ele estava preocupado com ela. Mais do que consigo mesmo. Lucas tinha esse instinto de auto-sacrifício. Ele queria que ela estivesse segura, apesar do casal não se falar há muitos meses. Uma coisa idiota que ele tinha feito. Antes disso o casamento já não andava bem e o sobrenome em comum era apenas uma lembrança do fracasso em que o relacionamento dos dois tinha se tornado. Lucas mantivera a situação de maneira firme, não como se fosse insensível à falta de felicidade a qual dos dois estavam submetidos, mas queria edificar um porto seguro, mesmo com a vida conjugal desabando.

Percebeu que as pancadas na porta do quarto haviam parado. — KARINA! — chamou mais uma vez.

— Lucas, socorro! — O grito da esposa soou abafado através de algumas paredes entre a distância que os separavam.

Sem pensar muito, Lucas tirou do caminho a cômoda que estava escorando a porta e saiu do quarto. Viu um amontoado daquelas pessoas com ferimentos terríveis pelo corpo, roupas e peles esfoladas, disputando espaço enquanto forçavam a porta do banheiro. — Ei! — Correu na direção deles, puxou o primeiro em que pôs as mãos e o empurrou escada abaixo. Logo em seguida ele mesmo foi agarrado por uma mulher que tentou mordê-lo. Quando tentou se proteger, sentiu os dentes dela cravando na mão que usou para se proteger e os dois rolaram até o andar debaixo. Lucas ficou atordoado, a adrenalina fez com que conseguisse se levantar mas o tornozelo lhe deu uma fisgada de dor, reclamando de uma torção provocada pela queda. Os dois desmortos no chão também se erguiam mas ao contrário de Lucas, eles não se importavam com os ferimentos que possuíam.

— Ei! — Ele já havia obtido a atenção dos invasores que estavam no andar de cima, os corpos despencavam pela escada no caminho de volta para a sala de estar. — Karina, sai daí! — Lucas dividia sua atenção entre os dois monstros à frente e a porta no andar de cima, esperando que a Karina surgisse de lá.

Segundos de uma terrível ansiedade. O chamado foi atendido, uma cabeça apareceu tímida detrás da porta do banheiro. — Foge, mulher, pelo amor de deus! — Ele mal conseguiu vê-la atravessar o corredor e sumir na outra ponta. Missão cumprida.

Lucas estava ficando acuado. Contra a parede, com uma perna machucada e a mão sangrando. Estava prestes a ser apanhado pelos dois desmostos. Passou o corpo pela janela estilhaçada e conseguiu mais um corte. Trincou os dentes, esticou a perna para alcançar o chão do lado de fora, sentiu duas mãos rígidas rasparem as suas costas. Escolheu a perna errada, o tornozelo falhou. Tropeçou e caiu.

CONTINUA

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Saudações joviais!

É isso, mais um ato publicado no prazo certinho! É muito bom cumprir as metas de escrita!

Para quem chegou até aqui, agradeço qualquer comentário com impressões, sugestões e críticas, qualquer feedback será útil para saber onde estou acertando ou errando! Inclusive, a escolha de uma nova história de apocalipse zumbi veio através de alguns comentários recebidos, pedindo mais histórias com a experiência contada em Sessão Pipoca dos Mortos. Claro, além dos comentários, vou agradecer mais ainda se compartilharem os textos que gostarem com os contados nas redes sociais!

Nos vemos semana que vem, com mais um ato de O Assunto Inacabado dos Boones, se as Musas nos favoreceram!

Bons ventos.

Obs: para ler o capítulo anterior da história, siga esse link.

MWXS

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sexta-feira, 24 de abril de 2020

Caronte: O Assunto Inacabado dos Boones (Ato 1)


Escrito por
MIKE WEVANNE

1.

Lucas e Karina Boones estavam sentados em sofás opostos de sua sala de estar. Ficaram ali durante toda aquela manhã de domingo, encarando um ao outro e quando se sentiam desconfortáveis, encaravam as paredes em volta. Não conversavam, mas o silêncio não era um problema, o aparelho de som estava tocando “Long Tall Sally” num volume alto demais para que pudessem se falar. Mas não faria diferença, porque eles não queriam.

Karina tentava se mexer o mínimo possível, para não mostrar o quanto suas mãos estavam tremendo. Assim que Lucas percebesse o quanto estava aflita, ela desabaria no choro. Lucas estava lidando melhor com a situação, na aparente tranquilidade que tentava dizer: — Olhe para mim, Karina, eu sou um homem que tem tudo sob controle! — Estava suando um pouco. Usou um lenço para limpar a testa. Era o calor ou era o esforço para esconder o nervosismo escapando pelos poros? E o maldito Little Richard gritando na sala não estava ajudando!

A casa dos Boones era um lugar respeitável. Condomínio fechado. Sua sala mostrava as comodidades de uma família bem constituída da classe média. Sofás confortáveis, uma mesa de centro moderna feita de madeira e vidro. TV grande, som surround. Ao redor, cortinas, quadros velhos, porcelana fria. Muitas fotografias mostrando Lucas e Karina junto de amigos e familiares, durante viagens e confraternizações.

Eram casados desde quando tinham vinte e pouco. Antes disso, já namoravam desde os meados da adolescência. Um casal apaixonado e feliz. “Destinados um ao outro” alguns diziam. Muitos sorrisos. Tinham uma energia cativante. Todos queriam estar perto dos Boones.

Com a passagem dos anos, aqueles retratos haviam se tornado janelas para a vida de dois desconhecidos. Um casal apaixonado e feliz. Definitivamente, não eram as mesmas pessoas que estavam naquela sala. Sentadas, mudas, insondáveis uma para a outra.

Não tinham mais nada para dizer, só podiam esperar. Naquele momento desenganado, apenas dois pares de olhos perdidos, de duas pessoas tentando lidar com uma situação sem jeito. Ela buscava conforto e ele confortá-la. Ambos estavam fadados ao fracasso e ainda nem estamos no final da história. Então a música terminou.

O barulho das pancadas violentas na porta e nas janelas puderam ser ouvidas novamente. Pessoas gritando do lado de fora. Nada que fizesse sentido. Karina encolheu no sofá, esperando a próxima música começar e abafar o caos vindo da rua e voltar para a sua falsa sensação de segurança dada pela ignorância dos sentidos.

Quando Little Richard começou “Tutti Frutti” era tarde demais. Não que estivesse fazendo qualquer diferença até então, ou fosse mudar a sucessão dos acontecimentos que seguiriam, mas Karina tinha essa esperança morta dentro de si e se agarrava a ela. Lucas, por outro lado, sabia que a morte era a única certeza daquela situação. Ela queria manter a ilusão enquanto ele só queria que tudo acabasse de uma vez.

A porta e as janelas se despedaçaram sob a força dos estranhos que invadiram a respeitosa casa dos Boones. Karina correu para o lado oposto e Lucas foi atrás. Perseguidos por uma multidão ensanguentada. Os invasores tinham muitos ferimentos. Cortes, mordidas, lacerações, pedaços dos corpos faltando. Deviam estar mortos, mas as bocas escancaradas e a disposição com que botavam a sala de Lucas e Karina Boones abaixo deixava claro o absurdo do contrário. Sob o peculiar infortúnio, aquela bela sala tinha perdido totalmente o charme. Difícil manter a harmonia da mobília quando tudo está sendo revirado e sujo de sangue por desmortos cambaleantes tentando matar os donos do lugar. Até o Little Richard se calou.


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sexta-feira, 17 de abril de 2020

Caronte: Sessão Pipoca dos Mortos (Ato 5)

Escrito por
MIKE WEVANNE

Dedicado a
PBG e AAV

Obs: leia os capítulos anteriores seguindo o link no final do post.

5.

— SOCORRO! — Um grito acordou Prisco. No susto, esticou as pernas e chutou um jarro de plantas. Ainda estava sentado na sacada do apartamento. Tinha caído no sono.

Levantou-se e reparou a manhã surgindo no horizonte entre os prédios ao redor. A serenidade matutina quase o fez duvidar do que havia acontecido. Lembrou do grito. Duvidou se realmente tinha escutado alguém pedindo ajuda ou se havia tido um pesadelo. Esfregou o rosto com as mãos e deixou algo murmurado escapar pela garganta. Nenhum pesadelo poderia ser pior do que a realidade.

Olhou para o interior do apartamento, havia apenas penumbra e silêncio. Andréa tinha ido descansar no sofá. Precisou. A mordida que tinha sofrido ficou bem feia. Quando ela começou a se sentir febril, Prisco desconfiara que poderia ser a inflamação do ferimento ou o estresse daquilo tudo. Provavelmente ambos, então ele havia pedido para ela ir deitar enquanto ele ficaria de vigília. O sono poderia lhe fazer bem. Quando Daniel chegasse eles poderiam procurar por Michelle e depois iriam até um hospital cuidar da mordida. Tudo ia acabar bem. Prisco prometera para Andréa que tudo acabaria bem.

Lembrar de Michelle não fez bem para ele. A culpa lhe deixou inquieto. Tentou espiar novamente as sacadas dos apartamentos vizinhos, até ensaiou alguns passos pelas beiradas da fachada do prédio para tentar alcançar uma saída alternativa de onde estavam presos, mas quando as pernas começaram a bambear, voltou de imediato com o coração pulando pela garganta. Prisco queria muito saber sobre Michelle. Estava preocupado de verdade. Ou queria apenas descarregar o fardo da consciência por tê-la abandonado do lado de fora?

— Michelle! — Sussurrou enquanto se esticou para além da sacada na direção do apartamento vizinho. — MICHELLE! — O grito veio depois que o esforço tinha acabado com o seu fôlego e a sua paciência.

Foi quando ele ouviu um barulho do lado de dentro do seu próprio apartamento. Uma pancada seca, como alguém caindo no chão. Prisco se encolheu e voltou mais uma vez para a segurança da sacada. Lembrou da trágica tentativa de fuga de Andréa e conferiu as chaves no bolso. Seu grito devia tê-la acordado e o susto feito ela cair do sofá.

Entrou e foi até a sala.

— Andréa? Acordou? — Prisco sussurrou preocupado. — Andréa, como está a mordida?

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Os primeiros minutos do amanhecer trouxeram luz e calor. Timidamente, ainda assim carregavam conforto e esperança.

— Foda-se! — Com um salto derradeiro Michelle conseguiu alcançar a sacada do apartamento de Prisco. Quando tentou firmar o pé, escorregou num bocado de terra de um jarro quebrado. No chão, ela respirou fundo, aliviada e com as pernas ainda tremendo pela proeza da escalada. Resultado da aplicação prática dos vídeos de parkour que gostava de assistir na internet… E da adrenalina, que fizera com que ela agisse primeiro e pensasse a respeito depois, sobre o absurdo que isso significava.

Levantou-se do chão. Tirou a terra das mãos e do traseiro. Não era como se a calça jeans já não estivesse suja antes. Olhou para baixo, viu a altura em que estava, conferindo o apuro pelo qual passou. — “Parkour de internet? Sério?” — A ideia parecia razoável no momento. Depois de ter escapado de lunáticos canibais.

Foi quando ela ouviu um som vindo lá debaixo. Disperso na rua deserta, o único som além do seu coração batendo. Um carro dobrou a esquina.

Michelle ficou muda. Era Daniel? — “Qual era a cor do carro dele?” — A ansiedade aumentou quando o veículo parou diante do prédio. Ela acenou. Os longos minutos em que nada aconteceu a fizeram machucar os lábios entre os dentes. Lembrou dos amigos. Olhou para o interior do apartamento, ficariam felizes de vê-la! Mas primeiro queria ter certeza e entregar a boa notícia. Ela estava viva e Daniel havia chegado para resgatá-los! Andréa deveria ter passado a madrugada inteira aflita pela amiga.

Uma pessoa saiu do veículo. Homem. Ele olhou ao redor, desconfiado. Ninguém mais. Então olhou para cima e acenou de volta. Era Daniel.

— É ele! — Michelle gritou animada. — Pessoal, é o Daniel!

Michelle o viu correndo para dentro do prédio. Então se virou para procurar os amigos. — Andréa! Prisco! O Daniel chegou, vamos embora!

Quando chegou à sala, viu a bagunça do lugar. Coisas caídas, TV no chão, sofá derrubado. Muito sangue. E a resposta de ninguém. Sentiu o coração ser engolido por algo frio e seu corpo congelou. — Pessoal, cadê vocês?

Ouviu um murmúrio. Vindo do corredor, alguém da cozinha para a sala. Passos vagarosos, arrastados. Andréa surgiu. Seu olhar perdido, sua roupa ensanguentada.

Michelle recuou, com os olhos marejados e os lábios trêmulos. Quando Andréa percebeu sua presença correu na sua direção. A boca escancarada não emitia mais do que murmúrios desesperados. E suas mãos estiradas buscando Michelle, como quem quisesse roubar um beijo.

FIM?

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Saudações joviais!

É isso. Depois de um atraso inconveniente consegui terminar o primeiro conto aqui no blog. Agradeço demais aqueles que disponibilizaram tempo e atenção aos textos publicados aqui, espero que tenham gostado da experiência!

O que acharam? Qual foi sua parte preferida? Qual foi a parte que não curtiu? Gostaria de ler mais histórias de apocalipse zumbi aqui no blog? O Comentário que for vai me ajudar bastante a melhorar o conteúdo do blog! E se a viagem valeu, que tal compartilhar com os amigos?

Sem mais, novamente, obrigado! Semana que vem embarcaremos uma nova história!

Bons ventos.

MWXS

Obs: seguem os links para os capítulos anteriores de Sessão Pipoca dos Mortos:
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sábado, 25 de janeiro de 2020

Caronte: Sessão Pipoca dos Mortos (Ato 4)

Escrito por
MIKE WEVANNE

Dedicado a
PBG e AAV

Obs: leia os capítulos anteriores seguindo os links no final do post.

4.

Abafando os gritos desesperados de Andréa, a dupla ouviu um urro semi-humano, animalesco demais para ser produzido pela garganta de um homem. Sob a penumbra, Prisco e Michelle chegaram à sala e encontraram um invasor atacando Andréa. Suas costas e os braços estavam cobertos de algo escuro. Escuro como sangue nas sombras. Andréa golpeava seu agressor enquanto ele a agarrava com as duas mãos e debruçava a cabeça sobre ela, como quem quisesse forçar um beijo.

Michelle atravessou a sala e saltou sobre as costas do estranho, envolveu o pescoço do homem com uma chave de braço e jogou o corpo para trás, mas ele não largou sua amiga. Prisco chegou em seguida, com uma pancada conseguiu libertar Andréa. Agarrou o invasor pela camisa e o jogou na direção da porta, que estava aberta. O peso de Michelle pendurada em seu pescoço fez com que o homem perdesse o equilíbrio. Além dos braços e ombros, o estranho também tinha o rosto e o pescoço ensanguentados. Prisco lhe acertou um chute no meio do peito. Ele cambaleou para fora do apartamento, e caiu no corredor.

Com Michelle ainda agarrada em suas costas.

Prisco viu a amiga sendo engolida pela escuridão do corredor. Um raio de luz surgiu, apontado de maneira caótica naquela direção, Andréa tinha pegado a lanterna e tentava ajudar. Eles conseguiram ver Michelle se arrastando para longe do homem que havia caído junto com ela e então a atacava. — Michelle! — Andréa gritou quando a amiga saiu do seu campo de visão. Foi quando eles ouviram uma comoção barulhenta, aquela confusão havia atraído os outros invasores que estavam naquele andar do prédio. Os urros cada vez mais altos e ferozes chegaram aos ouvidos de Prisco como uma onda de terror que se aproximava, o desespero atiçou seu instinto e seu instinto guiou sua ação: correu até a porta e a fechou pouco antes que pancadas furiosas a atingissem. Se ele não tivesse usado a tranca, apenas o seu corpo não teria sido suficiente para impedir que o arrastão tomasse o apartamento.

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Michelle havia se chocado contra a parede e caído no chão atordoada e sem fôlego. Teve apenas um instante para perceber onde estava e quando o fez, seu corpo foi tomado por um calafrio de puro medo. Estava no corredor. O homem com quem tinha caído também estava chão, ele grunia e avançava sobre ela. Na penumbra, um facho de luz surgiu e se revezou indeciso entre focar nela ou no seu agressor. Michelle conseguiu ver num relance os olhos furiosos com que ele a encarava, cuspindo baba e sangue, lançando suas mãos para agarrá-la mais do que estava preocupado em se equilibrar. Ela reconheceu o uniforme do porteiro do prédio. Michelle conseguiu acertar os dois pés em seu rosto e se projetou pro lado. Arrastou-se para longe dele e ouviu Andréa gritando seu nome.

Quando olhou para trás, viu o corredor, que estava escuro como todo o resto, a luz da lua conseguia entrar dentro do prédio por janelas e portas abertas, permitindo que ela visse a massa disforme de vultos correndo em sua direção, gritando e urrando, correndo e cambaleando, fora de controle. Michelle ouviu a porta do apartamento de Prisco bater a alguns metros entre ela o arrastão de loucos, restando apenas ela, as sombras e a morte adiante. Ela virou-se para o lado oposto, levantou e saiu correndo.

Mas foi impedida quando sentiu seu calcanhar ser agarrado pelo pulso gelado e viscoso do porteiro.


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Abaixo seguem os links para a leitura dos capítulos anteriores de Sessão Pipoca dos Mortos:

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Caronte: Sessão Pipoca dos Mortos (Ato 3)

Escrito por
MIKE WEVANNE

Dedicado a
PBG e AAV

Obs: os links para capítulos anteriores desta história estão no final do post!

3.

Detrás da porta do apartamento de Prisco, os três ouviram pessoas pelo corredor, correndo aos apelos de socorro do vizinho. Michelle quis ajudar, tentou tomar a chave do amigo, mas ele protestou.

— Tá doida? Tu não sabe o que tá acontecendo lá fora!

Os gritos tomaram o corredor do andar onde estavam. Barulho de luta. Gritos, xingamentos. E urros insanos de alguém demente. Andréa chorava. Em sua mente desesperada tinha certeza de que o prédio estava sendo alvo de um arrastão violento. Dividiu a apreensão com os amigos. Prisco suava feito um porco. Estava nervoso, com as costas apoiadas na porta e os pés cravados no chão. Pronto para tentar segurar qualquer coisa que tentasse forçar passagem. Michelle estava paralisada, não sabia o que fazer. Queria ajudar, ser útil, mas não fazia ideia de como.

Quando aquele escarcéu passou, ouviam apenas grunhidos incompreensíveis e passos perdidos pelo corredor do lado de fora do apartamento. Imaginaram o pior, não ousaram fazer barulho e atrair quem estivesse vagando ali. Os três atravessaram a noite naquela desesperança.

As ligações pro número da polícia eram inúteis, o sinal de linha ocupada era a única resposta que conseguiam.

Ananda, namorada de Prisco, ligou para o celular dele. Disse que estava segura e com a família. Explicou que o surto da tal super gripe havia piorado e as pessoas estavam manifestando ataques nervosos violentos. Era o que as notícias diziam, pelo que ela havia acompanhado na internet. O celular de Prisco foi o primeiro a ficar com a bateria descarregada.

Daniel, noivo de Andréa, ligou para ela. Ele estava na estrada, voltando para a cidade. Prometeu que ia buscá-la. Ela estava apavorada, queria ir para casa e encontrar a própria família. — “Sexta-feira 13 desgraçada!” — Saber que o namorado estava a caminho a tranquilizou.

Ninguém ligou para Michelle.

Alguns minutos depois a rede de conexão com a internet caiu de vez e os celulares se tornaram nada mais que lanternas. Michelle insistiu em checar o corredor, mas seu amigo não deixou. Ela não gostou de se sentir trancada por Prisco, mas conforme as horas passaram os instintos dos dois se inverteram. Prisco tentou espiar o apartamento vizinho pela sacada e até arriscou escalar a fachada do prédio buscando alguma saída, mas depois de um pequeno escorregão e uma bela encarada para o chão, cinco andares abaixo, resolveu que o risco não valia.

Michelle se resignou a esperar o amanhecer para tomar alguma decisão, afinal poderia ser o tempo da energia elétrica voltar a funcionar. Pareceu um plano razoável diante daquela crise. Prisco começou a sentir uma preocupação crescente com Ananda e alimentava a ideia de ir encontrá-la. Brincava com as chaves entre os dedos, mostrando inquietação. Michelle percebeu. Acabou o convencendo de que poderiam esperar Daniel, que vinha buscar Andréa, então aproveitariam a carona. Andréa gostou de terem incluído Daniel nos planos, desse modo sentiu que ela mesma estava ajudando.

Os três foram para a sacada e ficaram esperando. E esperaram. Abaixo deles, no nível das ruas, ocasionalmente viam pessoas vagando a esmo. Solitárias ou em grupos, as vezes correndo umas das outras. Viaturas policiais e ambulâncias passavam velozes. Todos pareciam vir de lugar algum e ir para qualquer lugar. Gritos desesperados ou grunhidos furiosos ressoavam distantes, abafados pela altura em que estavam.

As horas passaram enquanto esperavam ansiosos o carro de Daniel surgir dobrando a esquina. O vento frio da madrugada roubava mais do que o calor dos seus corpos, também lhes tirava todo o ânimo. Num estalo, Andréa reparou no fato de que mesmo com a chegada do seu namorado eles ainda não sabiam o que estava acontecendo no prédio. Como ele ia chegar até eles? Como o avisariam sobre o perigo vagando pelo corredor? Isso a perturbou. Michelle catou uma garrafa de cachaça perdida na cozinha e Prisco a acompanhou. Foram duas doses para cada, a primeira para espantar o frio, a segunda para acalmar os nervos. Foi quando ouviram um barulho na sala e um grito de mulher. E perceberam que Andréa não estava por perto. Nem as chaves estavam mais com Prisco.


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